domingo, 15 de setembro de 2024

Nós no último Pub

Publicado também no site A Terra é Redonda


O diretor de cinema Ken Loach (1936) nunca decepciona, não afirmo somente por ele provavelmente nunca ter saudado a Rainha, mas, principalmente, por seu trabalho no cinema, também, não a reverenciar.

Desde quando o assisti pela primeira vez, sabe-se lá há quantos anos, em Terra e Liberdade, no final dos anos 90, nunca mais perdi seus lançamentos.

Depois de terra e liberdade, que me fez agonizar de ódio e tristeza na plateia, assisti: Pão e rosas; Ventos da liberdade; À procura de Eric; A parte dos anjos; Eu, Daniel Blake; Você não estava aqui, que vi pouco antes do fechamento dos cinemas na pandemia; e, agora, O último pub.

Dos filmes que assisti percebo um diretor que desde 2009, com À procura de Eric, voltou sua câmera completamente ao cotidiano, aquele mais comezinho, buscando pequenos romances a partir da vida de pessoas comuns, como o carteiro e suas dificuldades pessoais e familiares; os adolescentes que cumprem liberdade assistida e desvendam corrupção no meio de milionários; o carpinteiro Daniel Blake que se vê num emaranhado de dificuldades para usar o sistema de seguridade social; e Ricky que trabalha muitas horas todos os dias para cumprir as entregas de uma mega empresa de e-commerce e suas consequências.

E agora é a vez de TJ Ballantyne, dono de um bar - seria um típico botequim de bairro se fosse no Brasil - ex-mineiro e sindicalista, filho de casal de mineiros sindicalistas. Mora numa pequena cidade em decadência econômica em razão do encerramento dos trabalhos da mineração que foi o motor econômico da região por décadas. Se quem estiver lendo ainda não assistiu ao filme é melhor deixar para ler depois, porque embora não se trate de uma crítica, minha vontade de registrar impressões pessoais tende à quebra do encanto a quem ainda não o assistiu. Pensei mesmo se caberia escrever sobre o filme… a quem nada perderá, e quiser, vamos a um chope no balcão do bar de TJ(I)…

Numa tarde qualquer a pequena cidade foi impactada pela chegada de um ônibus com refugiados sírios, antes mesmo do ônibus abrir as portas, externamente, foram duramente recebidos por discursos xenófobos como: voltem para suas terras, deixem-nos em paz etc. Uma representação mais longa do Brexit, já que o reino unido optou por nem sequer pertencer à união europeia, menos ainda ser tolerante a refugiados sírios, podemos concluir.

Uma das refugiadas Yara, fotojornalista, porta uma câmera e, ainda no ônibus, fotografa um dos mais exaltados ingleses. Ao desembarcar com seus pertences, deixa-os no chão, o fotografado pega sua câmera deixando-a cair, danificando-a, restando ela inconformada. Ela entra no bar e pede informações a TJ que se esquiva, não quer ser publicamente tido como contrário ao sentimento de rejeição daquela comunidade aos refugiados, embora internamente pense o contrário.

Yara, é uma menina especial, talvez exageradamente pollyânica. Ela em pouco tempo se aproxima de TJ e passa a conversar com ele nutrindo, com o passar do tempo, uma verdadeira relação de amizade.

Algum tempo depois que começa ir ao bar (the old aok) ao encontro de TJ, sob reprovação da maior parte dos frequentadores, conhece o anexo abandonado no fundo, um salão que no passado devia ter acolhido grandes cervejadas de trabalhadores, mas que a decadência econômica encerrou seu funcionamento deixando-o às teias de aranhas e à poeira, restando do bar apenas a pequena sala da frente com poucas mesas e um balcão.

O místico salão do fundo abrigava memórias da vila, especialmente fotos da época em que os sindicalistas mineiros possuíam força política e seus heroísmos foram registrados pelo tio de TJ, fotógrafo. Numa das fotos consta o texto: When you eat together, you stick together (quando você come junto, você fica junto). A foto eternizou a lembrança de uma das greves que durou mais tempo e que sem salários as famílias usavam aquele salão dos fundos para que tivessem o que comer, assim, juntavam o que possuíam para comer, estavam juntas e estando juntas agiam juntas, ideia que aguçou Yara a organizar encontros aos domingos para aproximar refugiados dos locais, sendo que estes últimos também sofriam, embora por outros motivos.

Há algo que agrida mais diretamente a cultura neoliberal e seu culto ao individualismo que estar juntos e agir juntos, dividir a soma do pouco que individualmente possuem a fim de que todos possam se alimentar em igualdade? TJ pertencia a uma geração castigada por Margareth Thatcher que impôs à força a cultura do neoliberalismo, ela defendeu não haver sociedade, apenas indivíduos, para lembrar de uma de suas frases que atingiu maior alcance e até hoje tem sido evocada por coaches em suas palestras vazias idolatrando o individualismo.

Yara convenceu TJ e sua esperançosa companheira a abrir o espaço, em pouco tempo mobilizaram pessoas, refugiadas e locais, que passaram a conviver ali aos domingos, conhecerem as dificuldades uma das outras, crianças que pouco tinham o que comer, pessoas com depressão profunda, ali encontravam pequenas soluções conjuntas. O bom utopismo de Loach, na melhor acepção possível, encontrou terreno fértil naqueles encontros. Apenas uma pequena parcela de frequentadores xenófobos recriminava a iniciativa. Ali uma boa inconsistência de argumentos aparece, lembram que entre eles um advém de família irlandesa, afinal, a quem pertence o vilarejo sendo que nem todos ingleses são mesmo ingleses? Irlandeses ou sírios podem?

A partir dos encontros Yara passou a fotografar pessoas comuns em seu cotidiano, em suas alegrias e tristezas, contagiou-as, mas também fez aumentar a repulsa de outras contra si própria, por TJ, que a acolheu, e pelas demais pessoas que não viam problema em conviver com refugiados.

O filme possui cenas de expressiva singeleza, eu escolheria quatro.

A primeira do estandarte que os refugiados produziram com um antigo carvalho no meio, com toda sua força, título do filme em inglês, onde consta no original: strength, solidarity resistance (força, solidariedade e resistência) e também o mesmo texto em árabe. Uma bandeira bilíngue que busca representar o encontro das duas culturas marcado pela solidariedade. E obviamente, o estandarte, em seu formato, pouco se parecia com uma bandeira política, mas com um tapete, algo específico da cultura árabe, de onde advinham, a mescla de culturas encontra na peça excelente representação de união.


Uma das mais bonitas cenas, quando fazem do anexo do pub um cinema projetam fotos clicadas por Yara dos populares na vila e de sua cultura. Mulheres que não saiam mais de casa, outras que trabalhavam, idosos e crianças sorrindo etc. Ali, fiquei com a impressão que Loach quis nos apresentar o cinema que ele busca produzir e seu significado, talvez queira nos dizer: eu filmo pessoas comuns emaranhadas em situações de complexidade socioeconômica. Pensei que eu e as outras poucas pessoas que assistíamos à sessão ocupávamos a mesma posição nos assentos que aquelas pessoas que estavam sentadas no cinema improvisado no fundo do bar, não havia mais nós e os outros, o pronome nós comportava a todxs. Até porque sabemos o que Loach procura com seus filmes e se estávamos lá atrás de seu trabalho poderíamos ocupar o lugar daquelas mesmas pessoas que nós assistíamos na nossa tela vendo outra tela. Nós éramos tão elas que não havia mais como distingui-las de nós na representação estética.

Um terceiro ponto que vale trazer, algo rigorosamente comovente, e talvez pertença à nossa cultura marcada por valores europeus, ocorreu quando TJ e Yara foram até a catedral de Durham retirar donativos. Vale observar que, embora portadora de experiências cosmopolitas, a cultura de Yara possuía referência síria. Ainda assim, ela se encantou pela arquitetura do local e pelo coral em formato de missa, dois objetos indiscutivelmente europeus, mas que não conduziram a uma forma de nacionalismo excludente, aquele que nega o outro. A catedral e seu coral impulsionaram-na a que evoluísse, pela catarse, do indivíduo singular ao gênero humano (como defendia György Lukács em sua estética, ocupando a arte a função de mediação entre o singular e o universal). Yara emocionou-se e se viu imersa nos sentimentos pertencentes àquela cultura, não conectada pelo singular, mas pela generidade humana (GattungsmäBigkeit), ali, Ela, TJ e todas as demais pessoas pertenciam apenas ao mesmo gênero humano, não havia mais ingleses ou sírios, a classificação não fazia qualquer sentido. Loach, um inconfundível ateu, paradoxalmente, recorreu à religião para alegorizar que somos todos iguais já que pertencemos ao gênero humano. Não foi a partir de particularismos identitários que Loach queria que víssemos seu trabalho, amém e oxalá.

Mas se o filme possui cenas de beleza sublime, há também a pequenez do humano presente pela inveja, a traição, o ódio, nos colegas de TJ que sabotam o salão para que não prossigam com os encontros dominicais. A contradição entre beleza e fealdade do humano estão ali presentes duelando o tempo todo.

As contradições são parte do filme e indicam-nos não haver simplismo onde o humano está presente. TJ é um homem que viveu uma depressão profunda, comum em nossos tempos de individualismo sob a lógica de salve-se quem puder, foi abandonado pela esposa e filho. Vive modestamente com uma cachorrinha. Num trecho lembra do dia em que pensou em suicídio, foi até a praia, quando a cachorrinha apareceu e iniciaram uma bonita relação, ela o salvou. São cenas típicas da devastação ocasionadas pelo neoliberalismo, a solidão das pessoas, a depressão, a fragilidade diante do impulso de morte, a intolerância, a violência presente nas redes sociais e os pets ocupando vazios deixados pelas relações humanas fraturadas.

Há uma cena de quando sua cachorrinha foge e um cão feroz a assassina, os adolescentes ainda zombam dele nas redes sociais, terreno fértil ao que há de pior nas pessoas. O conjunto conduz TJ a pensar novamente em suicídio, a cena é aterrorizante, distópica e sem um tiro ou explosão de bomba, a angústia se apresenta na delicadeza dos sentimentos. Talvez algo proporcionalmente triste, por aqui, seja a quantidade de sessões dedicadas ao filme nos cinemas e o público nele interessado…

O final do filme é bastante significativo e eu tenho esta como a quarta cena. Sabe-se desde o início que o pai de Yara é um preso político e passa por constantes riscos de ser morto. Ao final, a família recebe a notícia oficial de sua morte na prisão. As pessoas ficam sabendo e a notícia corre pelo vilarejo, em pouco tempo a porta da casa onde vivem torna-se local de um velório simbólico e toda a cidade vai até Yara e sua mãe confortá-las com abraços, flores e velas pela perda.

Loach sai vitorioso, a solidariedade dos que sofrem prevalecerá para enfrentarmos os desafios do presente, não mais com greves de mineiros, que sequer existem, mas de ex-mineiros com refugiados, desesperançosos, depauperados, solitários, essa batalha ocorrerá pelo que há de comum, a generidade humana, é a ética de Loach animando-nos a sair das zonas de desesperança sem a busca ingênua e simplória por alternativas particularizadas, sem nós e xs outrxs, mas um pronome nós que comporte todxs, por mais utópico que possa parecer é a opção que nos resta.

Fez-me lembrar de György Lukács que certa vez explicou numa entrevista sobre o cinema permitir que as pessoas refletissem sobre uma situação levando-as a compará-la com a própria, e que assim atingiu o objetivo a que se propôs, não de apresentar respostas, mas perguntas.(II)

Em tempos tão sombrios Loach é uma luz de esperança, quando o cinema assumiu a função de mero entretenimento, ele nos permite pensar tão profundamente sobre temas de nossa contemporaneidade sem perder de vista as complexidades socioeconômicas, culturais, históricas e geopolíticas. Ele não nos apresenta respostas, mas põe-nos perguntas a partir de pequenas vivências naquele vilarejo que pode bem representar, numa reposição estética, a sociedade contemporânea.




(I) Eu assisti apenas uma vez há duas semanas e posso ter sido impreciso em alguns detalhes, mas o essencial do que vi é isto.

(II) Lukács, G. Conversando com Lukács. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1969, p.212.


CARTA À FEFÊ


Nos últimos dias eu tenho visto tua ausência em tudo, no canto do quarto, que não tem mais tua caminha, ficou um espaço tão grande que eu nem soube preencher. A tigela de comida e a de água não sei o que fazer, os brinquedos… na mesa do café eu espero teus olhos pedintes que não aparecem. Não há mais você me seguindo pela casa sugerindo sairmos até a praça. Os caminhos que percorríamos regularmente têm a presença de tua ausência, o gramado onde fazíamos fotos semanais está vazio. Fui lá todos os últimos dias, nos mesmos horários em que íamos, desta vez pra chorar. Você hoje está apenas em minha memória.

Nos últimos meses, semanalmente fazíamos uma foto para marcar nosso envelhecimento e também porque eu sabia que tua idade avançava logaritmicamente.

Lembro de quando você apareceu em nossas vidas, eu não te dediquei muita atenção. Você morava na rua, estava doente, sem pelos e magra. Dalila quem insistiu em te salvar.

Passado algum tempo você estava melhor da sarna negra e foi morar conosco. Clara, inicialmente, como eu, não aprovou, mas depois aceitamos, embora ela tenha permanecido como a principal da casa até seu último dia.

Algum tempo depois você estava bonita com pelagem negra e farta como a de um urso. Passeava conosco e passou a gostar tanto de mim que eu não resisti, quando saíamos a brincar, eu jogava a bolinha, você corria para pegá-la e depois me devolvia. Ao voltar me olhava apaixonada com seus encantadores olhinhos de jabuticaba.

Você me ensinou sobre o processo de começar a amar alguém e que isto deve ser estimulado e construído, como fez comigo, alimentado cotidianamente, como um jardim, com disponibilidade e correspondência.
Tutor de pet sempre estará na condição de Pietá. Há cinco anos Clarinha nos deixou. Quando ela partiu todxs sofremos, você adoeceu e começou receber os cuidados do Dr Reinaldo. Passamos os últimos cinco anos cuidando de você com alimentação natural e homeopatia, o que prolongou o tempo e a qualidade da vida

Agora foi tua vez de nos deixar. Nosso momento é de luto, vontade de ir junto, mas a vida nunca foi lago, foi rio; nem uma fotografia estática, mas um filme. Isto passará, nossas lembranças serão as melhores!

domingo, 7 de abril de 2024

AMARO FREITAS 


Há duas semanas assisti o festejado pianista recifense @amarofreitaspiano no @sesc14bis




Eu o vi pela primeira vez numa edição do Jazz na Fábrica. Já era comentado em alguns grupos e fui assistí-lo, deve ter sido em 2017. Já era um grande musicista, excêntrico, mudérno (como diz Hermeto), mas tinha aquela identidade ainda em processo, uma fusão de muita musicalidade, mas bem jazzístico, era fácil perceber inspirações de Monk e também de John Cage.


Em 2020, raspando na chegada da pandemia ele tocou no Sesc Instrumental, deve ter sido uma das últimas apresentações antes do período de fechamento dos teatros. Aquela apresentação me ajudou passar as primeiras semanas da pandemia (quando vou numa apresentação boa fico com ela na cabeça por dias e aquele programa possuía o acréscimo de ficar gravado, voltei nele algumas vezes no youtube). Ali já encontrávamos um jazzista com características musicais nordestinas.


Tempos depois eu o vi no Café lá em Casa do @nelsonfariaoficial e já era um artista que encontrou o que procurava, sua identidade artística havia encontrado seus traços principais. Ele, visualmente, sua negritude, me faz lembrar um misto de Thelonius Monk com Charlie Mingus, embora nunca o tenha visto usando blazer, mas roupas coloridas e confortáveis que acentuam sua ancestralidade afrodescendente.


Um homem negro e nordestino que cresceu na periferia do Recife, no bairro Nova Descoberta, o que de algum modo sinaliza-nos o que ele significa à cultura brasileira, uma descoberta. O mais rico disso tudo é que ele não foi estudar música na Juilliard ou na Berklee, e nada contra quem foi. A música estava nele, bastava ser fertilizada. Ele é filho de padeiro e que também teve de vender pão para se manter, contou numa entrevista que não pôde pagar aulas de música e tomava aulas com um barbeiro que havia estudado um pouco mais. Hoje aquele mesmo homem, maduro e florescido, circula por importantes palcos do mundo levando nossa musicalidade nos ambientes reservados ao jazz.


E esse musicista encantador se atreveu a convidar o também pernambucano Zé Manoel para interpretarem um dos maiores discos da música brasileira: Clube da Esquina. O disco original já carrega uma riqueza rítmica, harmônica e melódica sofisticada que pouco se vê na música popular e com eles ganhou outros traços, com muitos rubatos que fizeram das músicas ainda mais intensas e envolventes, mormente com a participação afinada e emotiva da plateia. Foi um deleite, quem pôde assistir não tem do que reclamar, talvez um único motivo nos desagrade, acabou!

Quantos novos Amaros que não significam novas descobertas não temos perdidos neste país? São os gênios sem lâmpada, sem perspectiva, são os que fazem pão, entregadores, pintores de paredes, mecânicos... que têm um grande pianista esperando a oportunidade para nascer!

Viva Amaro Freitas e a Música Brasileira!







MASSACRE SIONISTA EM GAZA


Há duas semanas li o texto de Itamar Vieira Jr na Folha SP sobre o massacre promovido pelo exército sionista de Netanyahu em Gaza. Ele o concluiu com inequívoco acerto: "Qualquer manifestação sobre um evento complexo como a questão israelense-palestina aponta para o risco de cometermos injustiças. Mas silenciar pode soar como conivência (...)".



Fez com que eu me recordasse de Jean-Paul Sartre e a admoestadora apresentação do primeiro número da revista Les Temps Modernes, inaugurada logo ao final da segunda guerra: (...) "O escritor está numa situação de sua época; cada palavra tem repercussão. Cada silêncio também (...)."


Embora eu não seja escritor ou possua qualquer importância pública, lembrei-me que não deixei qualquer manifestação minimamente perene sobre o tema. Salvo stories, participação em manifestações de rua, assinado notas e atuado em Coletivos que registraram opinião sobre o tema, em termos de registro, nada existe.


Depois da foto de palestinos sendo alvejados na fila para receber alimentos, o adjetivo inaceitável perdeu significado. Não eram terroristas do Hamas ou militares que ali estavam, pode ser que algum estivesse, majoritariamente eram meros civis, incluindo crianças, mulheres e idosos.


Como bem registrou Zeina Latif, n'O Globo em 21 jan, pags 20-1 (...) o general Ghassan Alian, fez um pronunciamento em árabe dirigido à população de Gaza: “Animais têm de ser tratados como tais. Não haverá eletricidade nem água, haverá apenas destruição.” O ministro da Defesa, Yoav Gallant, afirmou que “não haverá eletricidade, comida, combustível — tudo está sendo bloqueado. Estamos lutando contra os animais humanos e vamos agir em conformidade.


A humanidade que reside em nós não pode permitir a adoção de classificar palestinos como eles, outros ou terroristas, quando também são Nós, são constitutivos de nossa generidade. É um pouco de cada um de nós que deixa de ser gente quando as imagens não nos afetam, passamos a ser menos humanos pela indiferença.


Chaplin n’O Grande Ditador termina com seu brilhantismo peculiar num discurso em defesa dos judeus como pertencentes e representantes de toda a humanidade, se fosse hoje seria contra Netanyahu e seus sionistas (não inclui o povo judeu) em defesa das pessoas massacradas em Gaza.


Isto não é aceitável faz bastante tempo!


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

 Religiosidade Musical

 

No tempo de Sebastian Bach a arte expressava e sintetizava a fé religiosa, são inúmeras catedrais, músicas, pinturas, esculturas e produções teatrais e literárias existentes. Podemos reconhecer que se não fosse a fé religiosa Bach não teria produzido sua rica, vasta, iluminada, perene e monumental obra musical.

Deve ser um pouco deste mesmo sentimento de proximidade com divindades que impulsiona algumas produções artísticas, em reconhecer a fé e materializa-la na música, aquela que séculos depois encontrou em Coltrane mais uma santidade e fez com que ele criasse sua própria religião musical.

E talvez seja esse sentimento quase religioso que me imponha a inafastável necessidade interna de absorver essas produções, de ser por elas arrebatado e contagiado ao ponto de ter de escrever, mesmo sem espaço e público leitor, atendendo apenas ao sentimento interno, não sobre Bach, Mozart, Coltrane, Hermeto, música universal, nem mesmo sobre Paulo Maia, mas sobre o sentimento autêntico que o humano carrega, sobre essa necessidade ética de fazer aquilo que se apresenta como a única opção correta.

Na 44ª edição do conhecido concurso de piano Guiomar Novaes, entre instrumentistas vestidos de gala, tocando harmonias e ritmos convencionais, já mais que centenários, apareceu Paulo Maia, camisa florida, em sua procissão pessoal no palco foi até o piano e mostrou sua identidade executando seu Suitão pro Campeão, não receou, marcou presença com a bandeira de sua escola aos olhos de todxs, como um destacamento militar excêntrico. Não deve ter sido diferente na história da música quando se abandonou o classicismo e compositores como Beethoven mergulharam no romantismo; quando Stravinski apresentou sua versão de música moderna; com Thelonious Monk ao inserir sua rubrica quase cubista na história do Jazz; e porquê não falar no albino Hermeto Pascoal expoente da música universal. A música sem isto seria estática, morta, mas ela é viva e depende de pessoas que queiram ir além da mera reprodução da cultura oficial.

Algum tempo atrás, no centro de São Paulo, Eu e Paulinho Maia, numa breve caminhada entre a Praça Roosevelt e o Sesc 24 de maio, onde ele se apresentou logo depois, contou-me de seu primeiro contato com a música do campeão, foi por uma fita K7 que ele ouviu ainda jovem e nela continha a gravação da apresentação de Hermeto em Montreaux. Foi tão impactante, aquele raio de luz que abre a escuridão e possibilita vermos aquilo que antes não víamos. Aquela fita mudou sua vida e até hoje produz efeitos, ou melhor, talvez produza mais que já produziu antes. Embora ele não tenha me dito, percebi o quanto aquilo era o contato com algo divino.

Paulinho e Hermeto em Duo
Escaleta e Berrante

Apenas pessoas que carregam fé em algo, são capazes de portar o novo, é o caso de Paulinho, que se presta, por conta própria, sozinho, há algum tempo, a gravar os dias do calendário do som, como um peregrino, a deixar registros da passagem da música universal, como se um saber absoluto se valesse do espírito de alguém como Hermeto para marcar sua existência sobre a terra... Paulinho segue devoto dessa força.

Paulinho, em plena pandemia, recebeu do próprio Hermeto partituras originais manuscritas de suas músicas inéditas. Não teve dúvidas, generoso como poucos, seguiu aquilo que internamente o tocou, juntou sua banda, como fieis cavaleiros, e foram ao estúdio tornar aquelas imagens contidas no pentagrama em sons para serem agora apreciados auditivamente.

Vejam como esta percepção faz sentido, em Verão Brasileiro, nos primeiros compassos, enquanto o piano de Paulo Maia delicadamente apresenta as primeiras notas, ao fundo, é o próprio Hermeto quem diz: Paulo Maia, acabei de escutar, quase voei da cadeira aqui, parabéns, Deus dizia pra mim quem era você e agora está confirmado o músico que você é, a musicalidade que você tem, a criação, tudo, a interpretação, gostei, tudo bem bonito... arrebente mesmo, tome conta do mundo ai!

Amizade Musical
Encontro de Duas gerações

Como disse o campeão: o álbum é uma lindeza só! Seja pelas composições do mestre ou pela interpretação e arranjos de Paulinho e a vivacidade de seus fieis cavaleiros musicistas.

Ouvindo o disco em primeira mão percebi que se Piazzolla gostou das estações do Padre Vivaldi e produziu suas estações porteñas, Hermeto dedicou a Paulinho Maia as quatro Estações Brasileiras. Outras seis músicas são igualmente ricas e universais, e que podem ser classificadas como olhares sobre paisagens brasileiras contadas sob a ótica da música universal, assim temos: seca no sertão, praia mansa, garoa paulistana, pelourinho, serra gaúcha e lagoa da pampulha. Ao final há uma preciosidade ainda mais disruptiva, que vai além do free jazz, mas que comportaria Ornette Coleman nela, intitulada Som da Aura, que bem sintetiza a mais elevada liberdade do espírito humano na música universal, uma quase iluminação religiosa.

Uma pena eu não possuir espaço em jornal ou em revista musical importante para apresentar ao público mais exigente e disponível a música de Hermeto interpretada pelo apóstolo Paulinho Maia e sua abençoada Banda.

Eu assisti muitas apresentações de Hermeto, algumas contaram com canjas de Paulinho. Sempre, ao final de seus longos solos, exigidos pelo mestre, que adora jogar na fogueira para ver como o músico se sai, o albino gritava aquilo que a esta altura todxs sabemos: Paulo Maia, grande músico!


Well Araújo


P.S. 1 - Abaixo temos Paulinho Maia numa de suas famosas canjas com a banda do campeão




P.S. 2 -  Paulinho é tão generoso que numa de suas gravações do calendário escolheu o dia de meu aniversário e gravou a 03 de novembro, longa vida a este musicista especial.







domingo, 22 de janeiro de 2023

Reminiscências guitarrísticas

 

Na história da música ocidental moderna, esta que predominou em nossos lares, o piano, e antes deste o cravo, foi não somente um mero instrumento musical, mas também ferramenta de educação da sensibilidade humana. Era em seu entorno que as gerações educaram sua sensibilidade estética auditiva em recitais ou em ambientes domésticos mais sofisticados.

No século XVIII os quartetos de cordas haydnianos embalavam as reuniões sociais e definiram o que seria música de câmara e a sensibilidade daquele período foi por eles conduzida. Os papéis do cello, da viola e dos dois violinos estavam lá desbravando uma nova linguagem de compositores, instrumentistas e ouvintes.

No início do século, especialmente em seu segundo quarto, o jazz, com fusões ocorridas, alargou esse campo da expressão sonora. E, mais recentemente, entre os anos 1960/70, a guitarra elétrica passou a ocupar alguma importância nesta função de exprimir sentimentos e também de educar as gerações a partir de seu conteúdo, numa função diferente, seus agudos trouxeram muito da expressividade violinística.

A guitarra teve geniais instrumentistas: Les Paul, Muddy Waters, BB King, Harrison, Richards, Jimi Hendrix, Clapton, Blackmore, Gilmour, SRV, mas teve também Jeff Beck, que possuía assinatura própria como poucos. A lista vai longe e as preferências, mesmo diante de obviedades unânimes, têm suas pitadas de subjetividade.

A primeira vez que ouvi Jeff Beck tocar, sem ainda saber quem era ele, na metade da década dos anos 1990, foi num CD de músicas selecionadas dos Yardbirds, contendo três guitarristas que posteriormente foram reconhecidos e alcançaram a fama: Clapton, Page e o lendário Jeff Beck. Já no final da adolescência eu conseguia perceber que não era a mesma pessoa que tocava, seja pelos timbres ou as opções de preencher a trilha musical com melodias, o que mais os distinguia entre si. Tempos depois encontrei os Yardbirds numa locadora da cidade, uma espécie de youtube da época que você levava a fita, inseria no videocassete e tinha de rebobinar antes de devolver. Levei a fita para casa, assisti os três guitarristas tocando, fui facilmente convencido de quem era o maior deles e um mundo se abriu a mim.

Clapton, mesmo genial, como garrincha, que sempre driblava para a direita, parece ter seu caminho melódico óbvio, e eu me mantenho devoto a São Slow hand; Page criou bons riffs, solos e conduções no Led Zepellin, Stairway to Heaven já foi objeto de desejo juvenil de qualquer guitarrista do planeta, mas nunca foi o guitarrista a me cativar por muito tempo. Já Jeff Beck era outra coisa, inovador, no tempo de hoje diríamos disruptivo, uma única nota saturada de sua guitarra era uma rubrica própria como uma pincelada de Van Gogh, seu timbre era diferente, suas melodias eram verdadeiramente inovadoras. Com o tempo, ainda usando Les Paul, quando ele já estava acima de toda uma geração de guitarristas, evoluiu musicalmente e desenvolveu um sofisticado uso de botão de volume combinado à ação de alavanca e harmônicos com sua Stratocaster que expressava com visceralidade algo que o violino cumpriu no passado com vibrato em notas agudas, dramáticas e cortantes, o genial Jeff Beck havia alcançado sua mais original e elevada versão musical.

Diz-se que Bach e Mozart foram capazes de equilibrar razão e emoção, pathos e logos, como o ideal de perfeição na Grécia clássica. Beck foi a explosão contida e calculada, não era uma bomba na calda de um foguete como Hendrix, foi um engenheiro apaixonado por expressões musicais explosivas, mas controladas e no compasso seguinte era doce e melodioso.

Há duas décadas, num daqueles Free Jazz, aquela edição ocorreu no Joquey Clube de São Paulo, eu o assisti ao vivo. Fiquei um pouco distante, mas pude sentir o timbre e sabemos que o som de apresentação musical ao vivo ouve-se com os ouvidos, olhos e com o corpo todo reverberando a partir da vibração que se recebe do PA, dos mais graves no peito aos mais agudos nas extremidades, óbvio que fiquei extático, ela tinha quase 60 anos, mas um vigor de palco invejável que eu com vinte e poucos anos não possuía. Nunca mais o assisti ao vivo, mas a lembrança daquela noite nunca se apagou, seu timbre era visceral, penetrante! Em passagens leves ele era tão delicado que parecia alguém a cantarolar melodias internas óbvias assoviando enquanto se caminha.

Sei do quanto que seria um privilégio de milionário assistir Jeff Beck num teatro pequeno e não num estádio. A impressão que tenho é que ele alcança seu maior rendimento nos clubes e sua sonoridade fica menos para o rock e mais para o fusion e o blues, que a mim é o mais fascinante e que seu timbre melhor se combina.

Jeff Beck tocou até o final de sua vida, aos 78 anos, ainda estava lá o velho Beck conduzindo sua banda com energia juvenil e precisão, ainda a frente de seu tempo e seduzindo gerações de jovens guitarristas, foi este cara que perdemos dias atrás, embora sua imortalidade tenha sido alcançada.


Well Araújo



quarta-feira, 27 de julho de 2022

 Yamandu Costa e o Brasil Real

 

(...) Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco.[i]


Machado de Assis em 1861 registrou em sua coluna no Diário do Rio de Janeiro a famosa distinção entre o país real e o oficial, o que alcançou o grande público mais de um século depois pelas aulas espetáculo de Ariano Suassuna.

Realmente nosso país real é burlesco e caricato, o que se agudiza nos espaços mais tradicionais, como os grandes espaços badalados nas grandes cidades. Em São Paulo, se for tomar espaços elitizados existem os shoppings classe A, restaurantes nos bairros endinheirados, a sala São Paulo e o já mais que centenário Theatro Municipal, que é o mais quatrocentão deles, salvo raríssimas exceções, o país real não vai a esses locais pomposos e nem sai em colunas sociais.

Aprendemos que a elegância em espaço público é de vestir-se com roupas ocidentais classudas, bem passadas, sapatos lustrados e uma gravata de bom tecido com um nó perfeito; e as mulheres com as muitas opções bem cortadas, costuradas e passadas adornadas por tudo o que for possível.

Há alguns anos assisti no Sesc Pinheiros à execução de Concerto de Frontera de Yamandu Costa com ele e a Orquestra do Estado do Mato Grosso e fiquei profundamente tocado com aquela alegoria, o que se repetiu anos depois no pomposo Theatro Municipal e, pra minha felicidade, semanas atrás no mesmo local, o que me motivou escrever estas linhas tão pessoais.

Não há como deixar de considerar que estamos no centenário da semana de 22 e que o gaúcho, que visivelmente se autodenuncia se-lo por suas vestimentas, solando à frente de uma orquestra, é uma das melhores representações possíveis, ainda mais quando o repertório foi escrito pelo próprio, o violonista de sete cordas com sua bombacha e alpargatas escrevendo aos músicos de fraque e gravata, há algo simbolicamente anti-colonial nisto.

Acompanho Yamandu pelos palcos de São Paulo há umas duas décadas e a impressão é de que ele nunca deixará de ser um genial musicista em qualquer parte do mundo, mas que carregará o sul do continente em suas veias e pensamentos. Sua atuação possui tanta energia, vida, autenticidade e sotaque que por vezes a ideia dele ter chegado ao theatro montado num cavalo, que fica amarrado na coxia, me assalta a percepção o que se soma ao aroma de lenha queimando que me sugere haver um braseiro no camarim.

Algo que me impressiona é sua aura de senhor do tempo, de ser um Cronos que o acelera e o atrasa como bem entender, fazendo o que quiser com seu instrumento combinado à orquestra, guiada por Minczuk, naquele silencioso diálogo musical entre os dois que nem a neurologia explica.

O que Yamandu nos ensina é que o belo não precisa ser apenas o institucionalizado pelo establishment, que o altivo pode também ser o gaúcho na orquestra. É o músico de renome que opta por gravar com Valter Silva, Luizinho Sete Cordas, seu mestre Lúcio Yanel ou entrar numa roda de choro ou jazz em qualquer botequim do mundo, tornando o local tão importante quanto os palcos mais reluzentes do planeta. Yamandu é a corporeificação do espírito emancipador, seu instrumento e sua música são representação da ponta sul do continente e de um país grandioso que permanece latente, como a grama que não expressa seu verde nos meses de inverno. Sua música carrega os sonhos de Bolivar, a américa invertida de Torres García, o nacional-popular gramsciniano, o tango de Piazzolla com o canto de Mercedes Sosa, a poesia de Drummond e o armorial de Ariano porque ele expressa culturalmente o país imponente e diverso que o quase centenário Darcy Ribeiro via n'O Povo Brasileiro. Quando eu o vejo há um profundo e catártico encontro de insconscientes ensinando-me ainda mais da potência da arte como expressão simbólica de nossos desejos e necessidades pessoais e históricas.

Como Villa-Lobos fez em seu tempo, com sotaque próprio, com sua refinada erudição e percepção musical agora é Yamandu quem levou os sons do Brasil mais legítimos e regionalizados à orquestra e ao opulento palco do Municipal descolonizando-o um centenário depois dos modernistas. Ele se inscreve entre Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Villa, Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Garoto, Horondino, Hermeto, Jobim, Elomar e Raphael Rabello e também entre Machado de Assis e tantas outras genialidades brasileiras.

Sem o menor receio afirmo que Yamandu é hoje nosso maior e mais autêntico e expressivo músico deste Brasil real que revela seus melhores instintos.

 

Well Araújo



[i] Machado de Assis in: Comentários da semana. Publicado originalmente no ‘Diário do Rio de Janeiro’, Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1861.