domingo, 7 de abril de 2024

AMARO FREITAS 


Há duas semanas assisti o festejado pianista recifense @amarofreitaspiano no @sesc14bis




Eu o vi pela primeira vez numa edição do Jazz na Fábrica. Já era comentado em alguns grupos e fui assistí-lo, deve ter sido em 2017. Já era um grande musicista, excêntrico, mudérno (como diz Hermeto), mas tinha aquela identidade ainda em processo, uma fusão de muita musicalidade, mas bem jazzístico, era fácil perceber inspirações de Monk e também de John Cage.


Em 2020, raspando na chegada da pandemia ele tocou no Sesc Instrumental, deve ter sido uma das últimas apresentações antes do período de fechamento dos teatros. Aquela apresentação me ajudou passar as primeiras semanas da pandemia (quando vou numa apresentação boa fico com ela na cabeça por dias e aquele programa possuía o acréscimo de ficar gravado, voltei nele algumas vezes no youtube). Ali já encontrávamos um jazzista com características musicais nordestinas.


Tempos depois eu o vi no Café lá em Casa do @nelsonfariaoficial e já era um artista que encontrou o que procurava, sua identidade artística havia encontrado seus traços principais. Ele, visualmente, sua negritude, me faz lembrar um misto de Thelonius Monk com Charlie Mingus, embora nunca o tenha visto usando blazer, mas roupas coloridas e confortáveis que acentuam sua ancestralidade afrodescendente.


Um homem negro e nordestino que cresceu na periferia do Recife, no bairro Nova Descoberta, o que de algum modo sinaliza-nos o que ele significa à cultura brasileira, uma descoberta. O mais rico disso tudo é que ele não foi estudar música na Juilliard ou na Berklee, e nada contra quem foi. A música estava nele, bastava ser fertilizada. Ele é filho de padeiro e que também teve de vender pão para se manter, contou numa entrevista que não pôde pagar aulas de música e tomava aulas com um barbeiro que havia estudado um pouco mais. Hoje aquele mesmo homem, maduro e florescido, circula por importantes palcos do mundo levando nossa musicalidade nos ambientes reservados ao jazz.


E esse musicista encantador se atreveu a convidar o também pernambucano Zé Manoel para interpretarem um dos maiores discos da música brasileira: Clube da Esquina. O disco original já carrega uma riqueza rítmica, harmônica e melódica sofisticada que pouco se vê na música popular e com eles ganhou outros traços, com muitos rubatos que fizeram das músicas ainda mais intensas e envolventes, mormente com a participação afinada e emotiva da plateia. Foi um deleite, quem pôde assistir não tem do que reclamar, talvez um único motivo nos desagrade, acabou!

Quantos novos Amaros que não significam novas descobertas não temos perdidos neste país? São os gênios sem lâmpada, sem perspectiva, são os que fazem pão, entregadores, pintores de paredes, mecânicos... que têm um grande pianista esperando a oportunidade para nascer!

Viva Amaro Freitas e a Música Brasileira!







MASSACRE SIONISTA EM GAZA


Há duas semanas li o texto de Itamar Vieira Jr na Folha SP sobre o massacre promovido pelo exército sionista de Netanyahu em Gaza. Ele o concluiu com inequívoco acerto: "Qualquer manifestação sobre um evento complexo como a questão israelense-palestina aponta para o risco de cometermos injustiças. Mas silenciar pode soar como conivência (...)".



Fez com que eu me recordasse de Jean-Paul Sartre e a admoestadora apresentação do primeiro número da revista Les Temps Modernes, inaugurada logo ao final da segunda guerra: (...) "O escritor está numa situação de sua época; cada palavra tem repercussão. Cada silêncio também (...)."


Embora eu não seja escritor ou possua qualquer importância pública, lembrei-me que não deixei qualquer manifestação minimamente perene sobre o tema. Salvo stories, participação em manifestações de rua, assinado notas e atuado em Coletivos que registraram opinião sobre o tema, em termos de registro, nada existe.


Depois da foto de palestinos sendo alvejados na fila para receber alimentos, o adjetivo inaceitável perdeu significado. Não eram terroristas do Hamas ou militares que ali estavam, pode ser que algum estivesse, majoritariamente eram meros civis, incluindo crianças, mulheres e idosos.


Como bem registrou Zeina Latif, n'O Globo em 21 jan, pags 20-1 (...) o general Ghassan Alian, fez um pronunciamento em árabe dirigido à população de Gaza: “Animais têm de ser tratados como tais. Não haverá eletricidade nem água, haverá apenas destruição.” O ministro da Defesa, Yoav Gallant, afirmou que “não haverá eletricidade, comida, combustível — tudo está sendo bloqueado. Estamos lutando contra os animais humanos e vamos agir em conformidade.


A humanidade que reside em nós não pode permitir a adoção de classificar palestinos como eles, outros ou terroristas, quando também são Nós, são constitutivos de nossa generidade. É um pouco de cada um de nós que deixa de ser gente quando as imagens não nos afetam, passamos a ser menos humanos pela indiferença.


Chaplin n’O Grande Ditador termina com seu brilhantismo peculiar num discurso em defesa dos judeus como pertencentes e representantes de toda a humanidade, se fosse hoje seria contra Netanyahu e seus sionistas (não inclui o povo judeu) em defesa das pessoas massacradas em Gaza.


Isto não é aceitável faz bastante tempo!


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

 Religiosidade Musical

 

No tempo de Sebastian Bach a arte expressava e sintetizava a fé religiosa, são inúmeras catedrais, músicas, pinturas, esculturas e produções teatrais e literárias existentes. Podemos reconhecer que se não fosse a fé religiosa Bach não teria produzido sua rica, vasta, iluminada, perene e monumental obra musical.

Deve ser um pouco deste mesmo sentimento de proximidade com divindades que impulsiona algumas produções artísticas, em reconhecer a fé e materializa-la na música, aquela que séculos depois encontrou em Coltrane mais uma santidade e fez com que ele criasse sua própria religião musical.

E talvez seja esse sentimento quase religioso que me imponha a inafastável necessidade interna de absorver essas produções, de ser por elas arrebatado e contagiado ao ponto de ter de escrever, mesmo sem espaço e público leitor, atendendo apenas ao sentimento interno, não sobre Bach, Mozart, Coltrane, Hermeto, música universal, nem mesmo sobre Paulo Maia, mas sobre o sentimento autêntico que o humano carrega, sobre essa necessidade ética de fazer aquilo que se apresenta como a única opção correta.

Na 44ª edição do conhecido concurso de piano Guiomar Novaes, entre instrumentistas vestidos de gala, tocando harmonias e ritmos convencionais, já mais que centenários, apareceu Paulo Maia, camisa florida, em sua procissão pessoal no palco foi até o piano e mostrou sua identidade executando seu Suitão pro Campeão, não receou, marcou presença com a bandeira de sua escola aos olhos de todxs, como um destacamento militar excêntrico. Não deve ter sido diferente na história da música quando se abandonou o classicismo e compositores como Beethoven mergulharam no romantismo; quando Stravinski apresentou sua versão de música moderna; com Thelonious Monk ao inserir sua rubrica quase cubista na história do Jazz; e porquê não falar no albino Hermeto Pascoal expoente da música universal. A música sem isto seria estática, morta, mas ela é viva e depende de pessoas que queiram ir além da mera reprodução da cultura oficial.

Algum tempo atrás, no centro de São Paulo, Eu e Paulinho Maia, numa breve caminhada entre a Praça Roosevelt e o Sesc 24 de maio, onde ele se apresentou logo depois, contou-me de seu primeiro contato com a música do campeão, foi por uma fita K7 que ele ouviu ainda jovem e nela continha a gravação da apresentação de Hermeto em Montreaux. Foi tão impactante, aquele raio de luz que abre a escuridão e possibilita vermos aquilo que antes não víamos. Aquela fita mudou sua vida e até hoje produz efeitos, ou melhor, talvez produza mais que já produziu antes. Embora ele não tenha me dito, percebi o quanto aquilo era o contato com algo divino.

Paulinho e Hermeto em Duo
Escaleta e Berrante

Apenas pessoas que carregam fé em algo, são capazes de portar o novo, é o caso de Paulinho, que se presta, por conta própria, sozinho, há algum tempo, a gravar os dias do calendário do som, como um peregrino, a deixar registros da passagem da música universal, como se um saber absoluto se valesse do espírito de alguém como Hermeto para marcar sua existência sobre a terra... Paulinho segue devoto dessa força.

Paulinho, em plena pandemia, recebeu do próprio Hermeto partituras originais manuscritas de suas músicas inéditas. Não teve dúvidas, generoso como poucos, seguiu aquilo que internamente o tocou, juntou sua banda, como fieis cavaleiros, e foram ao estúdio tornar aquelas imagens contidas no pentagrama em sons para serem agora apreciados auditivamente.

Vejam como esta percepção faz sentido, em Verão Brasileiro, nos primeiros compassos, enquanto o piano de Paulo Maia delicadamente apresenta as primeiras notas, ao fundo, é o próprio Hermeto quem diz: Paulo Maia, acabei de escutar, quase voei da cadeira aqui, parabéns, Deus dizia pra mim quem era você e agora está confirmado o músico que você é, a musicalidade que você tem, a criação, tudo, a interpretação, gostei, tudo bem bonito... arrebente mesmo, tome conta do mundo ai!

Amizade Musical
Encontro de Duas gerações

Como disse o campeão: o álbum é uma lindeza só! Seja pelas composições do mestre ou pela interpretação e arranjos de Paulinho e a vivacidade de seus fieis cavaleiros musicistas.

Ouvindo o disco em primeira mão percebi que se Piazzolla gostou das estações do Padre Vivaldi e produziu suas estações porteñas, Hermeto dedicou a Paulinho Maia as quatro Estações Brasileiras. Outras seis músicas são igualmente ricas e universais, e que podem ser classificadas como olhares sobre paisagens brasileiras contadas sob a ótica da música universal, assim temos: seca no sertão, praia mansa, garoa paulistana, pelourinho, serra gaúcha e lagoa da pampulha. Ao final há uma preciosidade ainda mais disruptiva, que vai além do free jazz, mas que comportaria Ornette Coleman nela, intitulada Som da Aura, que bem sintetiza a mais elevada liberdade do espírito humano na música universal, uma quase iluminação religiosa.

Uma pena eu não possuir espaço em jornal ou em revista musical importante para apresentar ao público mais exigente e disponível a música de Hermeto interpretada pelo apóstolo Paulinho Maia e sua abençoada Banda.

Eu assisti muitas apresentações de Hermeto, algumas contaram com canjas de Paulinho. Sempre, ao final de seus longos solos, exigidos pelo mestre, que adora jogar na fogueira para ver como o músico se sai, o albino gritava aquilo que a esta altura todxs sabemos: Paulo Maia, grande músico!


Well Araújo


P.S. 1 - Abaixo temos Paulinho Maia numa de suas famosas canjas com a banda do campeão




P.S. 2 -  Paulinho é tão generoso que numa de suas gravações do calendário escolheu o dia de meu aniversário e gravou a 03 de novembro, longa vida a este musicista especial.







domingo, 22 de janeiro de 2023

Reminiscências guitarrísticas

 

Na história da música ocidental moderna, esta que predominou em nossos lares, o piano, e antes deste o cravo, foi não somente um mero instrumento musical, mas também ferramenta de educação da sensibilidade humana. Era em seu entorno que as gerações educaram sua sensibilidade estética auditiva em recitais ou em ambientes domésticos mais sofisticados.

No século XVIII os quartetos de cordas haydnianos embalavam as reuniões sociais e definiram o que seria música de câmara e a sensibilidade daquele período foi por eles conduzida. Os papéis do cello, da viola e dos dois violinos estavam lá desbravando uma nova linguagem de compositores, instrumentistas e ouvintes.

No início do século, especialmente em seu segundo quarto, o jazz, com fusões ocorridas, alargou esse campo da expressão sonora. E, mais recentemente, entre os anos 1960/70, a guitarra elétrica passou a ocupar alguma importância nesta função de exprimir sentimentos e também de educar as gerações a partir de seu conteúdo, numa função diferente, seus agudos trouxeram muito da expressividade violinística.

A guitarra teve geniais instrumentistas: Les Paul, Muddy Waters, BB King, Harrison, Richards, Jimi Hendrix, Clapton, Blackmore, Gilmour, SRV, mas teve também Jeff Beck, que possuía assinatura própria como poucos. A lista vai longe e as preferências, mesmo diante de obviedades unânimes, têm suas pitadas de subjetividade.

A primeira vez que ouvi Jeff Beck tocar, sem ainda saber quem era ele, na metade da década dos anos 1990, foi num CD de músicas selecionadas dos Yardbirds, contendo três guitarristas que posteriormente foram reconhecidos e alcançaram a fama: Clapton, Page e o lendário Jeff Beck. Já no final da adolescência eu conseguia perceber que não era a mesma pessoa que tocava, seja pelos timbres ou as opções de preencher a trilha musical com melodias, o que mais os distinguia entre si. Tempos depois encontrei os Yardbirds numa locadora da cidade, uma espécie de youtube da época que você levava a fita, inseria no videocassete e tinha de rebobinar antes de devolver. Levei a fita para casa, assisti os três guitarristas tocando, fui facilmente convencido de quem era o maior deles e um mundo se abriu a mim.

Clapton, mesmo genial, como garrincha, que sempre driblava para a direita, parece ter seu caminho melódico óbvio, e eu me mantenho devoto a São Slow hand; Page criou bons riffs, solos e conduções no Led Zepellin, Stairway to Heaven já foi objeto de desejo juvenil de qualquer guitarrista do planeta, mas nunca foi o guitarrista a me cativar por muito tempo. Já Jeff Beck era outra coisa, inovador, no tempo de hoje diríamos disruptivo, uma única nota saturada de sua guitarra era uma rubrica própria como uma pincelada de Van Gogh, seu timbre era diferente, suas melodias eram verdadeiramente inovadoras. Com o tempo, ainda usando Les Paul, quando ele já estava acima de toda uma geração de guitarristas, evoluiu musicalmente e desenvolveu um sofisticado uso de botão de volume combinado à ação de alavanca e harmônicos com sua Stratocaster que expressava com visceralidade algo que o violino cumpriu no passado com vibrato em notas agudas, dramáticas e cortantes, o genial Jeff Beck havia alcançado sua mais original e elevada versão musical.

Diz-se que Bach e Mozart foram capazes de equilibrar razão e emoção, pathos e logos, como o ideal de perfeição na Grécia clássica. Beck foi a explosão contida e calculada, não era uma bomba na calda de um foguete como Hendrix, foi um engenheiro apaixonado por expressões musicais explosivas, mas controladas e no compasso seguinte era doce e melodioso.

Há duas décadas, num daqueles Free Jazz, aquela edição ocorreu no Joquey Clube de São Paulo, eu o assisti ao vivo. Fiquei um pouco distante, mas pude sentir o timbre e sabemos que o som de apresentação musical ao vivo ouve-se com os ouvidos, olhos e com o corpo todo reverberando a partir da vibração que se recebe do PA, dos mais graves no peito aos mais agudos nas extremidades, óbvio que fiquei extático, ela tinha quase 60 anos, mas um vigor de palco invejável que eu com vinte e poucos anos não possuía. Nunca mais o assisti ao vivo, mas a lembrança daquela noite nunca se apagou, seu timbre era visceral, penetrante! Em passagens leves ele era tão delicado que parecia alguém a cantarolar melodias internas óbvias assoviando enquanto se caminha.

Sei do quanto que seria um privilégio de milionário assistir Jeff Beck num teatro pequeno e não num estádio. A impressão que tenho é que ele alcança seu maior rendimento nos clubes e sua sonoridade fica menos para o rock e mais para o fusion e o blues, que a mim é o mais fascinante e que seu timbre melhor se combina.

Jeff Beck tocou até o final de sua vida, aos 78 anos, ainda estava lá o velho Beck conduzindo sua banda com energia juvenil e precisão, ainda a frente de seu tempo e seduzindo gerações de jovens guitarristas, foi este cara que perdemos dias atrás, embora sua imortalidade tenha sido alcançada.


Well Araújo



quarta-feira, 27 de julho de 2022

 Yamandu Costa e o Brasil Real

 

(...) Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco.[i]


Machado de Assis em 1861 registrou em sua coluna no Diário do Rio de Janeiro a famosa distinção entre o país real e o oficial, o que alcançou o grande público mais de um século depois pelas aulas espetáculo de Ariano Suassuna.

Realmente nosso país real é burlesco e caricato, o que se agudiza nos espaços mais tradicionais, como os grandes espaços badalados nas grandes cidades. Em São Paulo, se for tomar espaços elitizados existem os shoppings classe A, restaurantes nos bairros endinheirados, a sala São Paulo e o já mais que centenário Theatro Municipal, que é o mais quatrocentão deles, salvo raríssimas exceções, o país real não vai a esses locais pomposos e nem sai em colunas sociais.

Aprendemos que a elegância em espaço público é de vestir-se com roupas ocidentais classudas, bem passadas, sapatos lustrados e uma gravata de bom tecido com um nó perfeito; e as mulheres com as muitas opções bem cortadas, costuradas e passadas adornadas por tudo o que for possível.

Há alguns anos assisti no Sesc Pinheiros à execução de Concerto de Frontera de Yamandu Costa com ele e a Orquestra do Estado do Mato Grosso e fiquei profundamente tocado com aquela alegoria, o que se repetiu anos depois no pomposo Theatro Municipal e, pra minha felicidade, semanas atrás no mesmo local, o que me motivou escrever estas linhas tão pessoais.

Não há como deixar de considerar que estamos no centenário da semana de 22 e que o gaúcho, que visivelmente se autodenuncia se-lo por suas vestimentas, solando à frente de uma orquestra, é uma das melhores representações possíveis, ainda mais quando o repertório foi escrito pelo próprio, o violonista de sete cordas com sua bombacha e alpargatas escrevendo aos músicos de fraque e gravata, há algo simbolicamente anti-colonial nisto.

Acompanho Yamandu pelos palcos de São Paulo há umas duas décadas e a impressão é de que ele nunca deixará de ser um genial musicista em qualquer parte do mundo, mas que carregará o sul do continente em suas veias e pensamentos. Sua atuação possui tanta energia, vida, autenticidade e sotaque que por vezes a ideia dele ter chegado ao theatro montado num cavalo, que fica amarrado na coxia, me assalta a percepção o que se soma ao aroma de lenha queimando que me sugere haver um braseiro no camarim.

Algo que me impressiona é sua aura de senhor do tempo, de ser um Cronos que o acelera e o atrasa como bem entender, fazendo o que quiser com seu instrumento combinado à orquestra, guiada por Minczuk, naquele silencioso diálogo musical entre os dois que nem a neurologia explica.

O que Yamandu nos ensina é que o belo não precisa ser apenas o institucionalizado pelo establishment, que o altivo pode também ser o gaúcho na orquestra. É o músico de renome que opta por gravar com Valter Silva, Luizinho Sete Cordas, seu mestre Lúcio Yanel ou entrar numa roda de choro ou jazz em qualquer botequim do mundo, tornando o local tão importante quanto os palcos mais reluzentes do planeta. Yamandu é a corporeificação do espírito emancipador, seu instrumento e sua música são representação da ponta sul do continente e de um país grandioso que permanece latente, como a grama que não expressa seu verde nos meses de inverno. Sua música carrega os sonhos de Bolivar, a américa invertida de Torres García, o nacional-popular gramsciniano, o tango de Piazzolla com o canto de Mercedes Sosa, a poesia de Drummond e o armorial de Ariano porque ele expressa culturalmente o país imponente e diverso que o quase centenário Darcy Ribeiro via n'O Povo Brasileiro. Quando eu o vejo há um profundo e catártico encontro de insconscientes ensinando-me ainda mais da potência da arte como expressão simbólica de nossos desejos e necessidades pessoais e históricas.

Como Villa-Lobos fez em seu tempo, com sotaque próprio, com sua refinada erudição e percepção musical agora é Yamandu quem levou os sons do Brasil mais legítimos e regionalizados à orquestra e ao opulento palco do Municipal descolonizando-o um centenário depois dos modernistas. Ele se inscreve entre Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Villa, Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Garoto, Horondino, Hermeto, Jobim, Elomar e Raphael Rabello e também entre Machado de Assis e tantas outras genialidades brasileiras.

Sem o menor receio afirmo que Yamandu é hoje nosso maior e mais autêntico e expressivo músico deste Brasil real que revela seus melhores instintos.

 

Well Araújo



[i] Machado de Assis in: Comentários da semana. Publicado originalmente no ‘Diário do Rio de Janeiro’, Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1861.


segunda-feira, 12 de outubro de 2020

150.000 a menos


Bem que a pandemia poderia me inspirar escrever um bom texto, mesmo que melancólico, mas a inércia nunca me foi boa, sou inquieto e produtivo.

Mas foi a bendita fita que eu vi dias atrás que mexeu comigo, fez com que eu me visse nela representado.

Ela, que já foi uma linda fita que enlaçou um presente que adorei anos atrás, que era tão linda com sua cor tão viva, hoje está desbotada e sem vida. O presente que recebi não foi suficiente para atravessar o tempo, por mais que tenha sido um prazer sem tamanho recebe-lo e por mais que minha memória possua tendência à eternização de tudo, foi-se a cor a fita e o frescor de minha memória.

Aquela fita hoje espelha-me por representação, já que sou eu nela já tão sem vida, sem cor, sem oxigênio, sem vitaminas e minerais. Olhando no espelho consegui me esconder no autoengano, mas na representação da fita era eu nela espelhado com meu completo vazio, dor, apagão e em pleno desbotamento.

Estou apenas aguardando o sol voltar para pegar um cor para poder levar a fita no tintureiro esperando que seja possível que ela retome sua vida de beleza.

Lá se vão 150.000 brasileirxs que oficialmente perderam para a Covid... mas parece que está tudo indo bem!

Não consigo ver beleza alguma em mais nada, é somente a imagem da fita sem cor que me assalta a visão e impede de olhar adiante!

domingo, 14 de julho de 2019


Clarinha deu sua última corrida

“Escrever é esquecer...”
(Fernando Pessoa)
Bernardo Soares, o mais próximo ao verdadeiro autor, Fernando Pessoa, registrou, colérico, aquele que eu mais gosto, no fragmento 116 de seu Livro do Desassossego que “escrever é esquecer...”

Clara, uma pointer inglesa
Passado um mês da agonizante madrugada e da triste manhã de domingo de nove de junho ainda está difícil falar seu nome ou assumir quando entro em alguns espaços que com ela dividi que nunca mais a encontrarei. Ainda há um tanto dela em cada canto e em nossa memória, sinto sua falta, que seja ao menos de seu olhar melancólico sobre o mundo que tanto me confortava. Mas minha piccolina que corria meio torta com as orelhas abanando contra o vento já não existe mais!

Clara tinha certeza que era gente e que cachorro eram os demais, incluindo muitas pessoas. Afinal, ela sempre teve vida melhor que do humano comum, suas únicas preocupações eram comer, pedir petiscos, ganhar cafuné, descer da cama e caminhar até seu banheiro no gramado do quintal, passear sem uso de coleira por ruas, parques e praças e sorrir com o rabo como se riscasse o ar escrevendo um poema.

Meu coelhão na páscoa de 2019
Em sua breve vida, se fosse gente não ultrapassaria aquilo que denominamos adolescência, ela foi amada, provou bons pratos, porque gostava de comer tudo com gulodice. Era como uma versão feminina e canina do Garfield, não me recordo dela ter comido lasanha, mas provou diversos tipos de queijos, charcutaria, algumas gotas de bons vinhos lambidos na pontinha de meu dedo indicador, até espumantes ela experimentou em noites de natal, réveillon e aniversários. Nos finais de semana, pela manhã, gostava de pedir um pouco daquilo que comíamos: frutas, iogurte, um cantinho do pão e um pedaço de queijo. Somente ia até seu prato comer ração quando percebia, um tanto desapontada, que tínhamos encerrado nosso café. Só não fumou charuto ou tomou café porque não oferecemos.

Desde que chegou em casa sempre foi mais gente que cachorro. Foi tão humana que me aproximou da ideia e dos sentimentos imanentes à paternidade. Quando pequena peguei no colo, ensinei passear sem coleira, parar no semáforo e cortar ruas e avenidas na faixa de pedestres quando a sinalização permitia e trocávamos olhares recíprocos de felicidade e paixão.

Dormimos por anos juntos sob o mesmo cobertor. Sentimos um a respiração e os batimentos cardíacos do outro, como se eu fosse um cachorro da matilha ou ela um humano da família.
Ela adorava tomar banho morno no chuveiro de casa com sabonete granado de lavanda para bebês. Odiava ser banhada em petshop, o que ocorreu pouquíssimas vezes ao longo de sua vida, quando o inverno era rígido e o secador de cabelos de Dalila não dava conta da demanda.

Nunca dormiu fora do quarto e adorava travesseiros altos, no inverno edredons e no verão a brisa do ventilador.

Dormia no travesseiro
O mais racional seria encontrar o equilíbrio entre o uso e a preservação, o que é impossível, nunca existe esse raso binarismo, sempre há um pouco da outra opção contida naquela escolhida. Os cães vivem pouco e os amamos, sabemos que a intensidade deve ser alta, pois, o tempo não será extenso o suficiente. O amor deve ser o mais intenso e concentrado possível, no formato canino, o que ela me ensinou. Temos de aproveitar cada minuto, sem o medo de perde-los e sem que a tristeza se imponha inviabilizando a convivência e alguns abusos selvagens de correr pela mata atrás de caça.

Ela era linda correndo atrás de pombos na praça, se era internamente um perdigueiro, acabou, por falta de opção e perdizes, e sem entender e sequer mesmo ler Sartre, tornando-se caçadora de pombas (se bem que no inverno me acompanhava quando eu lia algo na cama bem coberto e dizia algo a ela sobre o conteúdo e ela parecia entender).

Não me conforta a ideia dela ser mais uma estrelinha no céu, mas é a única que me resta e tenho de aceitar sua compulsoriedade já que não há mais vida em seu corpo. Restam boas lembranças, o rastro deixado nos caminhos por onde passamos e as fotos guardadas, desde quando ela estava em plena atividade em caçadas até próximo ao final da vida em meu colo para ir até o quintal ou deitada na cama depois de tomar soro e dormir eternamente em nossos braços.

Prefiro não aceitar que seja o sono eterno, mas que ela tenha dado sua última corrida atrás de um pombo e dada sua valentia e insistência tenha voado e não conseguiu mais encontrar o caminho de volta! Espero algum dia encontra-la novamente, apesar de saber que este sentimento é uma merda de uma fraqueza do momento, sei que nunca mais a encontrarei, acabou para ela e algum dia acabará para nós também...

Pode ser mesmo que escrever seja esquecer, mas meu desejo é de materializar o conteúdo da dor da perda, em forma de texto, para nunca mais me esquecer da espetacular convivência que tivemos e do quanto que a convivência com um cão pode nos ensinar sobre nós mesmos acerca de sermos melhores.

Clarinha faz uma falta sem fim!


Caçando pombos na prefeitura de Santo André
Caçando pombos na praça Kennedy