Religiosidade Musical
No tempo de
Sebastian Bach a arte expressava e sintetizava a fé religiosa, são inúmeras
catedrais, músicas, pinturas, esculturas e produções teatrais e literárias existentes. Podemos
reconhecer que se não fosse a fé religiosa Bach não teria produzido sua rica, vasta,
iluminada, perene e monumental obra musical.
Deve ser um
pouco deste mesmo sentimento de proximidade com divindades que impulsiona
algumas produções artísticas, em reconhecer a fé e materializa-la na música,
aquela que séculos depois encontrou em Coltrane mais uma santidade e fez com que
ele criasse sua própria religião musical.
E talvez seja esse sentimento quase religioso que me imponha a inafastável necessidade interna de absorver essas produções, de ser por elas arrebatado e contagiado ao ponto de ter de escrever, mesmo sem espaço e público leitor, atendendo apenas ao sentimento interno, não sobre Bach, Mozart, Coltrane, Hermeto, música universal, nem mesmo sobre Paulo Maia, mas sobre o sentimento autêntico que o humano carrega, sobre essa necessidade ética de fazer aquilo que se apresenta como a única opção correta.
Algum tempo
atrás, no centro de São Paulo, Eu e Paulinho Maia, numa breve caminhada entre a
Praça Roosevelt e o Sesc 24 de maio, onde ele se apresentou logo depois, contou-me
de seu primeiro contato com a música do campeão, foi por uma fita K7 que ele
ouviu ainda jovem e nela continha a gravação da apresentação de Hermeto em
Montreaux. Foi tão impactante, aquele raio de luz que abre a escuridão e
possibilita vermos aquilo que antes não víamos. Aquela fita mudou sua vida e
até hoje produz efeitos, ou melhor, talvez produza mais que já produziu antes. Embora
ele não tenha me dito, percebi o quanto aquilo era o contato com algo divino.
Paulinho e Hermeto em Duo Escaleta e Berrante |
Paulinho, em
plena pandemia, recebeu do próprio Hermeto partituras originais manuscritas de
suas músicas inéditas. Não teve dúvidas, generoso como poucos, seguiu aquilo que internamente o tocou,
juntou sua banda, como fieis cavaleiros, e foram ao estúdio tornar aquelas
imagens contidas no pentagrama em sons para serem agora apreciados
auditivamente.
Vejam como esta percepção faz sentido, em Verão Brasileiro, nos primeiros compassos, enquanto o piano de Paulo Maia delicadamente apresenta as primeiras notas, ao fundo, é o próprio Hermeto quem diz: Paulo Maia, acabei de escutar, quase voei da cadeira aqui, parabéns, Deus dizia pra mim quem era você e agora está confirmado o músico que você é, a musicalidade que você tem, a criação, tudo, a interpretação, gostei, tudo bem bonito... arrebente mesmo, tome conta do mundo ai!
Amizade Musical Encontro de Duas gerações |
Como disse o campeão: o álbum é uma lindeza só! Seja pelas composições do mestre ou pela interpretação e arranjos de Paulinho e a vivacidade de seus fieis cavaleiros musicistas.
Ouvindo o disco em primeira mão percebi que se Piazzolla gostou das estações do Padre Vivaldi e produziu suas estações porteñas, Hermeto dedicou a Paulinho Maia as quatro Estações Brasileiras. Outras seis músicas são igualmente ricas e universais, e que podem ser classificadas como olhares sobre paisagens brasileiras contadas sob a ótica da música universal, assim temos: seca no sertão, praia mansa, garoa paulistana, pelourinho, serra gaúcha e lagoa da pampulha. Ao final há uma preciosidade ainda mais disruptiva, que vai além do free jazz, mas que comportaria Ornette Coleman nela, intitulada Som da Aura, que bem sintetiza a mais elevada liberdade do espírito humano na música universal, uma quase iluminação religiosa.
Uma pena eu não
possuir espaço em jornal ou em revista musical importante para apresentar ao
público mais exigente e disponível a música de Hermeto interpretada pelo
apóstolo Paulinho Maia e sua abençoada Banda.