quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

 Religiosidade Musical

 

No tempo de Sebastian Bach a arte expressava e sintetizava a fé religiosa, são inúmeras catedrais, músicas, pinturas, esculturas e produções teatrais e literárias existentes. Podemos reconhecer que se não fosse a fé religiosa Bach não teria produzido sua rica, vasta, iluminada, perene e monumental obra musical.

Deve ser um pouco deste mesmo sentimento de proximidade com divindades que impulsiona algumas produções artísticas, em reconhecer a fé e materializa-la na música, aquela que séculos depois encontrou em Coltrane mais uma santidade e fez com que ele criasse sua própria religião musical.

E talvez seja esse sentimento quase religioso que me imponha a inafastável necessidade interna de absorver essas produções, de ser por elas arrebatado e contagiado ao ponto de ter de escrever, mesmo sem espaço e público leitor, atendendo apenas ao sentimento interno, não sobre Bach, Mozart, Coltrane, Hermeto, música universal, nem mesmo sobre Paulo Maia, mas sobre o sentimento autêntico que o humano carrega, sobre essa necessidade ética de fazer aquilo que se apresenta como a única opção correta.

Na 44ª edição do conhecido concurso de piano Guiomar Novaes, entre instrumentistas vestidos de gala, tocando harmonias e ritmos convencionais, já mais que centenários, apareceu Paulo Maia, camisa florida, em sua procissão pessoal no palco foi até o piano e mostrou sua identidade executando seu Suitão pro Campeão, não receou, marcou presença com a bandeira de sua escola aos olhos de todxs, como um destacamento militar excêntrico. Não deve ter sido diferente na história da música quando se abandonou o classicismo e compositores como Beethoven mergulharam no romantismo; quando Stravinski apresentou sua versão de música moderna; com Thelonious Monk ao inserir sua rubrica quase cubista na história do Jazz; e porquê não falar no albino Hermeto Pascoal expoente da música universal. A música sem isto seria estática, morta, mas ela é viva e depende de pessoas que queiram ir além da mera reprodução da cultura oficial.

Algum tempo atrás, no centro de São Paulo, Eu e Paulinho Maia, numa breve caminhada entre a Praça Roosevelt e o Sesc 24 de maio, onde ele se apresentou logo depois, contou-me de seu primeiro contato com a música do campeão, foi por uma fita K7 que ele ouviu ainda jovem e nela continha a gravação da apresentação de Hermeto em Montreaux. Foi tão impactante, aquele raio de luz que abre a escuridão e possibilita vermos aquilo que antes não víamos. Aquela fita mudou sua vida e até hoje produz efeitos, ou melhor, talvez produza mais que já produziu antes. Embora ele não tenha me dito, percebi o quanto aquilo era o contato com algo divino.

Paulinho e Hermeto em Duo
Escaleta e Berrante

Apenas pessoas que carregam fé em algo, são capazes de portar o novo, é o caso de Paulinho, que se presta, por conta própria, sozinho, há algum tempo, a gravar os dias do calendário do som, como um peregrino, a deixar registros da passagem da música universal, como se um saber absoluto se valesse do espírito de alguém como Hermeto para marcar sua existência sobre a terra... Paulinho segue devoto dessa força.

Paulinho, em plena pandemia, recebeu do próprio Hermeto partituras originais manuscritas de suas músicas inéditas. Não teve dúvidas, generoso como poucos, seguiu aquilo que internamente o tocou, juntou sua banda, como fieis cavaleiros, e foram ao estúdio tornar aquelas imagens contidas no pentagrama em sons para serem agora apreciados auditivamente.

Vejam como esta percepção faz sentido, em Verão Brasileiro, nos primeiros compassos, enquanto o piano de Paulo Maia delicadamente apresenta as primeiras notas, ao fundo, é o próprio Hermeto quem diz: Paulo Maia, acabei de escutar, quase voei da cadeira aqui, parabéns, Deus dizia pra mim quem era você e agora está confirmado o músico que você é, a musicalidade que você tem, a criação, tudo, a interpretação, gostei, tudo bem bonito... arrebente mesmo, tome conta do mundo ai!

Amizade Musical
Encontro de Duas gerações

Como disse o campeão: o álbum é uma lindeza só! Seja pelas composições do mestre ou pela interpretação e arranjos de Paulinho e a vivacidade de seus fieis cavaleiros musicistas.

Ouvindo o disco em primeira mão percebi que se Piazzolla gostou das estações do Padre Vivaldi e produziu suas estações porteñas, Hermeto dedicou a Paulinho Maia as quatro Estações Brasileiras. Outras seis músicas são igualmente ricas e universais, e que podem ser classificadas como olhares sobre paisagens brasileiras contadas sob a ótica da música universal, assim temos: seca no sertão, praia mansa, garoa paulistana, pelourinho, serra gaúcha e lagoa da pampulha. Ao final há uma preciosidade ainda mais disruptiva, que vai além do free jazz, mas que comportaria Ornette Coleman nela, intitulada Som da Aura, que bem sintetiza a mais elevada liberdade do espírito humano na música universal, uma quase iluminação religiosa.

Uma pena eu não possuir espaço em jornal ou em revista musical importante para apresentar ao público mais exigente e disponível a música de Hermeto interpretada pelo apóstolo Paulinho Maia e sua abençoada Banda.

Eu assisti muitas apresentações de Hermeto, algumas contaram com canjas de Paulinho. Sempre, ao final de seus longos solos, exigidos pelo mestre, que adora jogar na fogueira para ver como o músico se sai, o albino gritava aquilo que a esta altura todxs sabemos: Paulo Maia, grande músico!


Well Araújo


P.S. 1 - Abaixo temos Paulinho Maia numa de suas famosas canjas com a banda do campeão




P.S. 2 -  Paulinho é tão generoso que numa de suas gravações do calendário escolheu o dia de meu aniversário e gravou a 03 de novembro, longa vida a este musicista especial.







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