quarta-feira, 27 de julho de 2022

 Yamandu Costa e o Brasil Real

 

(...) Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco.[i]


Machado de Assis em 1861 registrou em sua coluna no Diário do Rio de Janeiro a famosa distinção entre o país real e o oficial, o que alcançou o grande público mais de um século depois pelas aulas espetáculo de Ariano Suassuna.

Realmente nosso país real é burlesco e caricato, o que se agudiza nos espaços mais tradicionais, como os grandes espaços badalados nas grandes cidades. Em São Paulo, se for tomar espaços elitizados existem os shoppings classe A, restaurantes nos bairros endinheirados, a sala São Paulo e o já mais que centenário Theatro Municipal, que é o mais quatrocentão deles, salvo raríssimas exceções, o país real não vai a esses locais pomposos e nem sai em colunas sociais.

Aprendemos que a elegância em espaço público é de vestir-se com roupas ocidentais classudas, bem passadas, sapatos lustrados e uma gravata de bom tecido com um nó perfeito; e as mulheres com as muitas opções bem cortadas, costuradas e passadas adornadas por tudo o que for possível.

Há alguns anos assisti no Sesc Pinheiros à execução de Concerto de Frontera de Yamandu Costa com ele e a Orquestra do Estado do Mato Grosso e fiquei profundamente tocado com aquela alegoria, o que se repetiu anos depois no pomposo Theatro Municipal e, pra minha felicidade, semanas atrás no mesmo local, o que me motivou escrever estas linhas tão pessoais.

Não há como deixar de considerar que estamos no centenário da semana de 22 e que o gaúcho, que visivelmente se autodenuncia se-lo por suas vestimentas, solando à frente de uma orquestra, é uma das melhores representações possíveis, ainda mais quando o repertório foi escrito pelo próprio, o violonista de sete cordas com sua bombacha e alpargatas escrevendo aos músicos de fraque e gravata, há algo simbolicamente anti-colonial nisto.

Acompanho Yamandu pelos palcos de São Paulo há umas duas décadas e a impressão é de que ele nunca deixará de ser um genial musicista em qualquer parte do mundo, mas que carregará o sul do continente em suas veias e pensamentos. Sua atuação possui tanta energia, vida, autenticidade e sotaque que por vezes a ideia dele ter chegado ao theatro montado num cavalo, que fica amarrado na coxia, me assalta a percepção o que se soma ao aroma de lenha queimando que me sugere haver um braseiro no camarim.

Algo que me impressiona é sua aura de senhor do tempo, de ser um Cronos que o acelera e o atrasa como bem entender, fazendo o que quiser com seu instrumento combinado à orquestra, guiada por Minczuk, naquele silencioso diálogo musical entre os dois que nem a neurologia explica.

O que Yamandu nos ensina é que o belo não precisa ser apenas o institucionalizado pelo establishment, que o altivo pode também ser o gaúcho na orquestra. É o músico de renome que opta por gravar com Valter Silva, Luizinho Sete Cordas, seu mestre Lúcio Yanel ou entrar numa roda de choro ou jazz em qualquer botequim do mundo, tornando o local tão importante quanto os palcos mais reluzentes do planeta. Yamandu é a corporeificação do espírito emancipador, seu instrumento e sua música são representação da ponta sul do continente e de um país grandioso que permanece latente, como a grama que não expressa seu verde nos meses de inverno. Sua música carrega os sonhos de Bolivar, a américa invertida de Torres García, o nacional-popular gramsciniano, o tango de Piazzolla com o canto de Mercedes Sosa, a poesia de Drummond e o armorial de Ariano porque ele expressa culturalmente o país imponente e diverso que o quase centenário Darcy Ribeiro via n'O Povo Brasileiro. Quando eu o vejo há um profundo e catártico encontro de insconscientes ensinando-me ainda mais da potência da arte como expressão simbólica de nossos desejos e necessidades pessoais e históricas.

Como Villa-Lobos fez em seu tempo, com sotaque próprio, com sua refinada erudição e percepção musical agora é Yamandu quem levou os sons do Brasil mais legítimos e regionalizados à orquestra e ao opulento palco do Municipal descolonizando-o um centenário depois dos modernistas. Ele se inscreve entre Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Villa, Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Garoto, Horondino, Hermeto, Jobim, Elomar e Raphael Rabello e também entre Machado de Assis e tantas outras genialidades brasileiras.

Sem o menor receio afirmo que Yamandu é hoje nosso maior e mais autêntico e expressivo músico deste Brasil real que revela seus melhores instintos.

 

Well Araújo



[i] Machado de Assis in: Comentários da semana. Publicado originalmente no ‘Diário do Rio de Janeiro’, Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1861.


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