segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Volante de Várzea vai impresso à livraria vestido de gala



Fracassei em tudo o que tentei na vida.

Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.

Tentei salvar os índios, não consegui.

Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.

Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.

Mas os fracassos são minhas vitórias.

Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.

Darcy Ribeiro


Nós utopistas, como bem lembrou Duvivier em um de seus saudosos Greg News, recordando Darcy Ribeiro, já temos um discurso pronto à inevitável derrota, e isto é tão esperado que sequer sabemos nos preparar para comemorar vitórias, é meio como jogar na loteria.

Quando registro o pronome nós incluo-me e também meu amigo autor desta despretensiosa obra que não será um best-seller, será mais uma teimosia editorial. Uma bela insistência, já que filho de retirantes irresignados às capitanias hereditárias foi estudar e numa manhã qualquer acordou e se viu escritor, só pode ser por perseverança, tal qual aquela flor de Drummond que nasceu no asfalto. Assim é nosso amigo e escritor Dr Limas, que traz a tradição rebelde de Antônio Conselheiro com a perspicácia e erudição de Glauber Rocha com seu cinema de manifestos nada hollywoodianos, para lembrar de outra área em que Limas é versado. Também é fanático pelo esporte bretão e cerveja, os inúmeros textos sobre o tema o denunciam, um quase hooligan dos trópicos, mas que vez ou outra se tempera com poesias apaixonadas à Vinicius de Moraes sob embalo dos irmãos Gallagher. E há algo de que Limas muito se orgulha é de sua existência paterna, basta vermos quando está acompanhado por Pietro, seu filho!

Voltando ao antropólogo preferido dos losers gauches, ministro da educação de Jango e posteriormente vice-governador e Secretário de Brizola, ele nos ensinou a importância da derrota, sua validade, que chega quase ser uma vitória, dependendo de contra quem ela ocorrer. Muda tudo saber contra qual projeto ou força a nossa derrota é obtida. Disse ele ser muito melhor estar ao lado dos que perderam do que ao lado daqueles que o venceram. Concordamos! Assim, a nós, constituintes das camadas pobres deste país, a derrota é também nossa forma de vitória, seria delinquência ético-política mudarmos de lado, trocando nosso assento na cadeira dos oprimidos a dos opressores!

Há uns dois anos Ed Limas me procurou para abrir um Blog e o título tem muito de seu universo cultural, demoramos chegar nele, mas na lapidação o título foi surgindo óbvio, como uma escultura: Volante de Time de Várzea. Contudo, sua vastidão cultural é tão ampla que o futebol é insuficiente para circunscrevê-lo. Assim, se é um volante de time de várzea, aqui também se mostra um escritor de editora de várzea e também poderia sê-lo cineasta de várzea, crítico de cinema de várzea, crítico literário, também, de várzea. Ele é o cara da várzea, mesmo numa época em que as tais várzeas, e no Rio de Janeiro os subúrbios, parecem não mais existirem, agora foram englobadas no gênero perifa!

Tenho me perguntado por quê inventamos de criar o Blog Volante de Time de Várzea. Como bons derrotados não pensamos muito, apenas sentimos vontade e o fizemos, não ocorreu reunião do time de marketing, não pensamos em finanças, vendas, realpolitik etc., foi como oferecer um gole de cerveja a um conhecido no bar, apenas dissemos um ao outro: pega um copo e traz pra mesa!

Eu também tenho me perguntado ainda por quê eu a prefaciar o utópico blog agora transmutado à pomposa versão impressa? Sei que há camaradagem mediando tudo na vida, quase nunca é mérito, nossas elites e classes médias altas que nos digam, as pessoas que conheceram nos bons colégios lhes renderão acesso privilegiado por toda a vida, isto faz toda a diferença, não foi diferente comigo, salvo o fato de não ocuparmos o patamar social do privilégio e nem termos nos conhecidos em colégios tradicionais.

No plano da imanência não faz muito sentido prefaciá-lo, algumas pessoas podem pensar o contrário, mas eu não sou no sentido erudito um homem de letras, hommes des lettres, como diziam no passado em meios mais polidos, ou seja, não faz muito sentido mesmo prefaciar o livro de nosso amigo, não vou acrescer qualquer valor ao objeto de seu trabalho… talvez seja a amizade mediando, costurando reto em linhas tortas como um drible de garrincha.

Eu sempre gostei de coisas concretas, aprendi marcenaria, fazer pão de fermentação natural, jardinagem, horta, mecânica, cozinhar, criar abelhas e outras tantas aventuras manuais. Mas advirto a mim mesmo que as palavras não deixam de representar objetos, o contrário não, ontologicamente primário é o objeto, a palavra é mera representação, basta lembrar da famosa cadeira de Joseph Kosuth. E eu sou vidrado em objetos concretos e não em suas representações escritas… o que complica mais ainda eu continuar aqui!

Mas aprendi outra extensão da palavra arquitetar com o festejado e saudoso arquiteto Paulo Mendes da Rocha. A ele, arquitetar não era atuação de seu ofício de arquiteto, mas significava tudo em que pomos as mãos ou até mesmo quando nos pomos a pensar sobre algo, mesmo que figurativamente, estamos arquitetanto algo.

Se há algo que me ajudou vir aqui escrever torto em linhas retas é porque sei que a leitura de textos de pessoas que escrevem bem têm tanta concretude como se pudéssemos tocar os objetos representados pelas palavras. O que me motiva escrever é esperar que alguém leia como se visse objetos reais a partir destas insossas palavras, embora eu não acredite nesta minha capacidade.

Já Ed Limas faz com que as palavras tenham até cheiro, sabor, textura e formas visuais, e sua cultura pop-erudita que circula desde a MTV, passa pela ABL, cinemas de rua, seminários universitários, as antigas gerais dos estádios e os botequins de várzea fazem com que nos identifiquemos com seus passeios pelos recortes de mundo por onde circula que se metamorfoseiam em palavras e nossa leitura realiza a reconversão nos objetos reais que ele vivenciou. Foi isto que me permitiu aceitar me limitar às palavras, além do fato que sempre fui péssimo desenhista e se eu pudesse pintar um mundo ele não teria beleza alguma, já com as palavras eu escondo melhor minhas limitações. 

O texto de Ed Limas é uma metamorfose, como naquela magnífica obra de Escher, Metamorphosis. O mundo é vivenciado pelo escritor, ele registra em suas percepções e converte-o em textos para que o alcancemos lendo. São muitas mediações, mas lê-lo é relacionar-se com o mundo real a partir do ponto de vista do autor, como bem apresentado por György Lukács em sua Estética.

Há uma observação final, a existência de um recorte socioeconômico de leitoras e leitores bastante específicos buscadxs nesta obra, os textos têm formato para serem lidos no transporte público, seja no trem, metrô ou ônibus, quem nunca cortou a cidade num destes - e nossos abismos socioeconômicos contam com pessoas que circulam pela cidade apenas em carros blindados ou em helicópteros e devidamente escoltadxs com segurança -, certamente, os textos não farão sentido algum, o autor mimetiza a fração popular de nosso povo.

Ler o Volante de várzea é um passeio acompanhado por ele ouvindo suas sofisticadas percepções sobre o mundo por onde circula. É uma vitória sua, é também nossa por partilhar conosco!


o Editor do Blog


domingo, 15 de dezembro de 2024

Aforismos do quarentenário

texto de novembro de 2019

Recebi uma infinidade de mensagens bonitas e carinhosas na data de ontem, até hoje ainda as recebi. O que é uma alegria e queria retribuir de algum modo com algumas reflexões pessoais que não sei se devem ser apresentadas assim, mas decidi publica-las.

Esta foi a quarta vez que comemorei dez anos de vida, a segunda dos vinte e a primeira dos quarenta, o que com alguma sorte comemorarei mais uma vez, já que minha saúde sinaliza ser impossível uma terceira ocorrência.

Pelo corpo ainda tenho uns trinta anos, a pele aparenta quarenta, os poucos cabelos já apontam que passei dos sessenta, pela barba dos setenta e a cabeça deve ser de oitenta há alguns anos....
Cá estou, agora creio que adulto. Aprendi com os anos a reconhecer o valor do passado e das tradições, e que nosso caminho que segue uma cronologia também se combina com uma busca do passado, da anacronia, que é um dos elementos de nossa identidade, já que não temos pedrigree registrado nas sociedades cinófilas para definir o que somos. Sou pouco compreensivo com quem ainda está vivo e saudável e prefere viver num mundo que não existe mais, salvo em suas memórias, porque efetivamente só existe o presente.

Ainda assim procuro ser justo e generoso com as pessoas como forma de retribuir o que aprendi nos últimos quarenta anos. Se não fosse por um universo de pessoas sequer uma palavra eu saberia, e aprendi muitas delas. As grandes pessoas que conheci sempre tinham o valor da retribuição à coletividade daquilo que elas receberam, porque sempre souberam que sozinhos nada seriam, embora eu não seja grande ao menos procuro pelo princípio. Seria igualmente injusto deixarmos de valorizar todas pessoas que nos encorajaram em nossos momentos de insegurança, fraqueza ou doença, todxs os têm, afinal, viver com intensidade é como atravessar uma corda bamba ao vivo e se fôssemos integralmente seguros não haveria surpresa alguma e não precisaríamos ser especiais para fazermos a diferença.

Aprendi também que muito da vida é negociável, que a plena identificação nossa com as demais pessoas não existe, nem mesmo conosco, já que sempre gostaríamos de ser um pouco melhores comparando com aquilo que efetivamente conseguimos, ou seja, há também uma auto-reprovação daquilo que somos para aquilo que pretendemos ser. Assim, seria mais que injusto esperar das demais pessoas que conseguissem ser exatamente aquilo que gostaríamos que nós mesmos fôssemos, embora não alcancemos... Assim é possível conviver, respeitar e admirar pessoas que têm elementos e valores comuns com os nossos, só devemos manter mesmo distância dos que não têm valor algum sobre a vida, que são invejosos, fracos, babacas, bundamoles, desconhecem a amizade, o amor, a honra e a busca da felicidade que nunca deve ser uma conquista individual, mas social no âmbito das oportunidades de desenvolvimento humano serem igualitárias. A cada dia o Brasil perde aqueles que poderiam ser grandes professores, engenheiros, médicos e profissionais das mais diversas áreas para construírem um país melhor, mas é incapaz de que todos eles tenham a mínima oportunidade de serem alfabetizados verdadeiramente e que possam ter uma educação básica aceitável, quem não se incomoda com isto não é respeitável.

O melhor caminho nem sempre é a linha reta, pode ser a hipérbole ou as curvas sinuosas e somente não podemos ser flexíveis com nossos mais importantes valores que não estão passíveis a qualquer negociação e a covardia sempre deverá passar longe, quem tem valores deve ter coragem para defendê-los até as últimas consequências, afinal, não vale viver tendo perdido os princípios mais essenciais, seria uma vida vazia e nula, preferível cair com eles que depois deles!

A cada dia viver neste país nos ensina a importância da democracia, da alteridade, da dedicação aos estudos para obtenção de conhecimento e da necessidade da convivência com pessoas civilizadas.

Consegui reequilibrar a saúde com a homeopatia, parecia uma bobagem, mas tem dado bons resultados. Comer com cuidado, beber com algum controle, não cometer mais que seis excessos anuais (exagerar uma vez a cada dois meses não cumulativamente), praticar esporte com moderação, passear e conversar com o cachorro, estar nos espaços de arte e cultura produzindo e recebendo (cinema, música, literatura, teatro, plásticas), nutrir verdadeiras amizades e buscar a felicidade são formas de se obter saúde e desejar a vida.

Aprendi também que a simplificação cria boas retóricas que não possuem a menor relação com a realidade, somar 1+1+1+1 ou 2+2 só na matemática resulta em quatro. É um tanto difícil nestas somas da vida cotidiana alcançar o quatro, quem simplifica sempre se desqualifica publicamente. Não é propaganda de um livro que não li, mas, entre o preto e o branco existem muitos tons de cinza e um marco de nossa maturidade é encontrar o maior número de tons entre os dois extremos, afinal, conhecimento é capacidade de ir além de mera observação, não é o que se olha, mas o que se vê. Aprendi lendo um dos maiores pensadores do século XX que conhecimento é o domínio da toda a cadeia da relação de causalidade, em todas suas conexões de desenvolvimento, em sua totalidade.

Mantenho forte antipatia, para ser eufemista, por quem é feito de plástico e vive no mundo protocolar das aparências, não acredita no que diz e nem se sente envergonhada; e, talvez, mais ainda, pelos deslumbrados. Dos primeiros eu rio, dos segundos me afasto. Viver integralmente exige ser e estar verdadeiramente.

Não é porque não se alcança a plenitude que se abandona a intervenção na vida, devemos buscar sempre o mais próximo do 3,99999999 daquela soma. Não se abandona e nem se cria ilusões, tem de se conviver com a certeza de que a impossibilidade e o inalcançável operam constantemente, mas nossa teimosia deve nos conduzir, até mesmo nos enganando, como sendo possível alcançarmos o absoluto.

Conhecimento não é o mesmo que sabedoria e combinar os dois não é para iniciantes. Tem pessoas cultas que não são sábias, o contrário apresenta pessoas sábias que são frágeis e ingênuas diante do mundo, já que lhes falta conhecimento.

Desconfio de quem não ri e de quem nunca é sério, é possível combinar os dois. A vida sem o humor não valeria bem menos. E as antigas comédias italianas de Monicelli, politicamente incorretas, eram estupendas.

Quanto mais se vive mais se perde, as pessoas que gostamos se vão, e os bichos também, te-las apenas na memória é como dente que dói, mas não há dentista que cure essa dor. Não há motivo para sermos fdp com os outros, salvo em legítima defesa, todos vamos passar por estas barras pesadas, nós e eles, e seremos devorados por aqueles que habitam nosso intestino.

Tentarei buscar minha segunda chegada aos quarenta anos e procurarei fazer algum uso destas reflexões, mas guardei outras para quando chegar aos 50, pelo que vi cada decênio vai ficando mais próximo... até lá!

domingo, 15 de setembro de 2024

Nós no último Pub

Publicado também no site A Terra é Redonda


O diretor de cinema Ken Loach (1936) nunca decepciona, não afirmo somente por ele provavelmente nunca ter saudado a Rainha, mas, principalmente, por seu trabalho no cinema, também, não a reverenciar.

Desde quando o assisti pela primeira vez, sabe-se lá há quantos anos, em Terra e Liberdade, no final dos anos 90, nunca mais perdi seus lançamentos.

Depois de terra e liberdade, que me fez agonizar de ódio e tristeza na plateia, assisti: Pão e rosas; Ventos da liberdade; À procura de Eric; A parte dos anjos; Eu, Daniel Blake; Você não estava aqui, que vi pouco antes do fechamento dos cinemas na pandemia; e, agora, O último pub.

Dos filmes que assisti percebo um diretor que desde 2009, com À procura de Eric, voltou sua câmera completamente ao cotidiano, aquele mais comezinho, buscando pequenos romances a partir da vida de pessoas comuns, como o carteiro e suas dificuldades pessoais e familiares; os adolescentes que cumprem liberdade assistida e desvendam corrupção no meio de milionários; o carpinteiro Daniel Blake que se vê num emaranhado de dificuldades para usar o sistema de seguridade social; e Ricky que trabalha muitas horas todos os dias para cumprir as entregas de uma mega empresa de e-commerce e suas consequências.

E agora é a vez de TJ Ballantyne, dono de um bar - seria um típico botequim de bairro se fosse no Brasil - ex-mineiro e sindicalista, filho de casal de mineiros sindicalistas. Mora numa pequena cidade em decadência econômica em razão do encerramento dos trabalhos da mineração que foi o motor econômico da região por décadas. Se quem estiver lendo ainda não assistiu ao filme é melhor deixar para ler depois, porque embora não se trate de uma crítica, minha vontade de registrar impressões pessoais tende à quebra do encanto a quem ainda não o assistiu. Pensei mesmo se caberia escrever sobre o filme… a quem nada perderá, e quiser, vamos a um chope no balcão do bar de TJ(I)…

Numa tarde qualquer a pequena cidade foi impactada pela chegada de um ônibus com refugiados sírios, antes mesmo do ônibus abrir as portas, externamente, foram duramente recebidos por discursos xenófobos como: voltem para suas terras, deixem-nos em paz etc. Uma representação mais longa do Brexit, já que o reino unido optou por nem sequer pertencer à união europeia, menos ainda ser tolerante a refugiados sírios, podemos concluir.

Uma das refugiadas Yara, fotojornalista, porta uma câmera e, ainda no ônibus, fotografa um dos mais exaltados ingleses. Ao desembarcar com seus pertences, deixa-os no chão, o fotografado pega sua câmera deixando-a cair, danificando-a, restando ela inconformada. Ela entra no bar e pede informações a TJ que se esquiva, não quer ser publicamente tido como contrário ao sentimento de rejeição daquela comunidade aos refugiados, embora internamente pense o contrário.

Yara, é uma menina especial, talvez exageradamente pollyânica. Ela em pouco tempo se aproxima de TJ e passa a conversar com ele nutrindo, com o passar do tempo, uma verdadeira relação de amizade.

Algum tempo depois que começa ir ao bar (the old aok) ao encontro de TJ, sob reprovação da maior parte dos frequentadores, conhece o anexo abandonado no fundo, um salão que no passado devia ter acolhido grandes cervejadas de trabalhadores, mas que a decadência econômica encerrou seu funcionamento deixando-o às teias de aranhas e à poeira, restando do bar apenas a pequena sala da frente com poucas mesas e um balcão.

O místico salão do fundo abrigava memórias da vila, especialmente fotos da época em que os sindicalistas mineiros possuíam força política e seus heroísmos foram registrados pelo tio de TJ, fotógrafo. Numa das fotos consta o texto: When you eat together, you stick together (quando você come junto, você fica junto). A foto eternizou a lembrança de uma das greves que durou mais tempo e que sem salários as famílias usavam aquele salão dos fundos para que tivessem o que comer, assim, juntavam o que possuíam para comer, estavam juntas e estando juntas agiam juntas, ideia que aguçou Yara a organizar encontros aos domingos para aproximar refugiados dos locais, sendo que estes últimos também sofriam, embora por outros motivos.

Há algo que agrida mais diretamente a cultura neoliberal e seu culto ao individualismo que estar juntos e agir juntos, dividir a soma do pouco que individualmente possuem a fim de que todos possam se alimentar em igualdade? TJ pertencia a uma geração castigada por Margareth Thatcher que impôs à força a cultura do neoliberalismo, ela defendeu não haver sociedade, apenas indivíduos, para lembrar de uma de suas frases que atingiu maior alcance e até hoje tem sido evocada por coaches em suas palestras vazias idolatrando o individualismo.

Yara convenceu TJ e sua esperançosa companheira a abrir o espaço, em pouco tempo mobilizaram pessoas, refugiadas e locais, que passaram a conviver ali aos domingos, conhecerem as dificuldades uma das outras, crianças que pouco tinham o que comer, pessoas com depressão profunda, ali encontravam pequenas soluções conjuntas. O bom utopismo de Loach, na melhor acepção possível, encontrou terreno fértil naqueles encontros. Apenas uma pequena parcela de frequentadores xenófobos recriminava a iniciativa. Ali uma boa inconsistência de argumentos aparece, lembram que entre eles um advém de família irlandesa, afinal, a quem pertence o vilarejo sendo que nem todos ingleses são mesmo ingleses? Irlandeses ou sírios podem?

A partir dos encontros Yara passou a fotografar pessoas comuns em seu cotidiano, em suas alegrias e tristezas, contagiou-as, mas também fez aumentar a repulsa de outras contra si própria, por TJ, que a acolheu, e pelas demais pessoas que não viam problema em conviver com refugiados.

O filme possui cenas de expressiva singeleza, eu escolheria quatro.

A primeira do estandarte que os refugiados produziram com um antigo carvalho no meio, com toda sua força, título do filme em inglês, onde consta no original: strength, solidarity resistance (força, solidariedade e resistência) e também o mesmo texto em árabe. Uma bandeira bilíngue que busca representar o encontro das duas culturas marcado pela solidariedade. E obviamente, o estandarte, em seu formato, pouco se parecia com uma bandeira política, mas com um tapete, algo específico da cultura árabe, de onde advinham, a mescla de culturas encontra na peça excelente representação de união.


Uma das mais bonitas cenas, quando fazem do anexo do pub um cinema projetam fotos clicadas por Yara dos populares na vila e de sua cultura. Mulheres que não saiam mais de casa, outras que trabalhavam, idosos e crianças sorrindo etc. Ali, fiquei com a impressão que Loach quis nos apresentar o cinema que ele busca produzir e seu significado, talvez queira nos dizer: eu filmo pessoas comuns emaranhadas em situações de complexidade socioeconômica. Pensei que eu e as outras poucas pessoas que assistíamos à sessão ocupávamos a mesma posição nos assentos que aquelas pessoas que estavam sentadas no cinema improvisado no fundo do bar, não havia mais nós e os outros, o pronome nós comportava a todxs. Até porque sabemos o que Loach procura com seus filmes e se estávamos lá atrás de seu trabalho poderíamos ocupar o lugar daquelas mesmas pessoas que nós assistíamos na nossa tela vendo outra tela. Nós éramos tão elas que não havia mais como distingui-las de nós na representação estética.

Um terceiro ponto que vale trazer, algo rigorosamente comovente, e talvez pertença à nossa cultura marcada por valores europeus, ocorreu quando TJ e Yara foram até a catedral de Durham retirar donativos. Vale observar que, embora portadora de experiências cosmopolitas, a cultura de Yara possuía referência síria. Ainda assim, ela se encantou pela arquitetura do local e pelo coral em formato de missa, dois objetos indiscutivelmente europeus, mas que não conduziram a uma forma de nacionalismo excludente, aquele que nega o outro. A catedral e seu coral impulsionaram-na a que evoluísse, pela catarse, do indivíduo singular ao gênero humano (como defendia György Lukács em sua estética, ocupando a arte a função de mediação entre o singular e o universal). Yara emocionou-se e se viu imersa nos sentimentos pertencentes àquela cultura, não conectada pelo singular, mas pela generidade humana (GattungsmäBigkeit), ali, Ela, TJ e todas as demais pessoas pertenciam apenas ao mesmo gênero humano, não havia mais ingleses ou sírios, a classificação não fazia qualquer sentido. Loach, um inconfundível ateu, paradoxalmente, recorreu à religião para alegorizar que somos todos iguais já que pertencemos ao gênero humano. Não foi a partir de particularismos identitários que Loach queria que víssemos seu trabalho, amém e oxalá.

Mas se o filme possui cenas de beleza sublime, há também a pequenez do humano presente pela inveja, a traição, o ódio, nos colegas de TJ que sabotam o salão para que não prossigam com os encontros dominicais. A contradição entre beleza e fealdade do humano estão ali presentes duelando o tempo todo.

As contradições são parte do filme e indicam-nos não haver simplismo onde o humano está presente. TJ é um homem que viveu uma depressão profunda, comum em nossos tempos de individualismo sob a lógica de salve-se quem puder, foi abandonado pela esposa e filho. Vive modestamente com uma cachorrinha. Num trecho lembra do dia em que pensou em suicídio, foi até a praia, quando a cachorrinha apareceu e iniciaram uma bonita relação, ela o salvou. São cenas típicas da devastação ocasionadas pelo neoliberalismo, a solidão das pessoas, a depressão, a fragilidade diante do impulso de morte, a intolerância, a violência presente nas redes sociais e os pets ocupando vazios deixados pelas relações humanas fraturadas.

Há uma cena de quando sua cachorrinha foge e um cão feroz a assassina, os adolescentes ainda zombam dele nas redes sociais, terreno fértil ao que há de pior nas pessoas. O conjunto conduz TJ a pensar novamente em suicídio, a cena é aterrorizante, distópica e sem um tiro ou explosão de bomba, a angústia se apresenta na delicadeza dos sentimentos. Talvez algo proporcionalmente triste, por aqui, seja a quantidade de sessões dedicadas ao filme nos cinemas e o público nele interessado…

O final do filme é bastante significativo e eu tenho esta como a quarta cena. Sabe-se desde o início que o pai de Yara é um preso político e passa por constantes riscos de ser morto. Ao final, a família recebe a notícia oficial de sua morte na prisão. As pessoas ficam sabendo e a notícia corre pelo vilarejo, em pouco tempo a porta da casa onde vivem torna-se local de um velório simbólico e toda a cidade vai até Yara e sua mãe confortá-las com abraços, flores e velas pela perda.

Loach sai vitorioso, a solidariedade dos que sofrem prevalecerá para enfrentarmos os desafios do presente, não mais com greves de mineiros, que sequer existem, mas de ex-mineiros com refugiados, desesperançosos, depauperados, solitários, essa batalha ocorrerá pelo que há de comum, a generidade humana, é a ética de Loach animando-nos a sair das zonas de desesperança sem a busca ingênua e simplória por alternativas particularizadas, sem nós e xs outrxs, mas um pronome nós que comporte todxs, por mais utópico que possa parecer é a opção que nos resta.

Fez-me lembrar de György Lukács que certa vez explicou numa entrevista sobre o cinema permitir que as pessoas refletissem sobre uma situação levando-as a compará-la com a própria, e que assim atingiu o objetivo a que se propôs, não de apresentar respostas, mas perguntas.(II)

Em tempos tão sombrios Loach é uma luz de esperança, quando o cinema assumiu a função de mero entretenimento, ele nos permite pensar tão profundamente sobre temas de nossa contemporaneidade sem perder de vista as complexidades socioeconômicas, culturais, históricas e geopolíticas. Ele não nos apresenta respostas, mas põe-nos perguntas a partir de pequenas vivências naquele vilarejo que pode bem representar, numa reposição estética, a sociedade contemporânea.




(I) Eu assisti apenas uma vez há duas semanas e posso ter sido impreciso em alguns detalhes, mas o essencial do que vi é isto.

(II) Lukács, G. Conversando com Lukács. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1969, p.212.


CARTA À FEFÊ


Nos últimos dias eu tenho visto tua ausência em tudo, no canto do quarto, que não tem mais tua caminha, ficou um espaço tão grande que eu nem soube preencher. A tigela de comida e a de água não sei o que fazer, os brinquedos… na mesa do café eu espero teus olhos pedintes que não aparecem. Não há mais você me seguindo pela casa sugerindo sairmos até a praça. Os caminhos que percorríamos regularmente têm a presença de tua ausência, o gramado onde fazíamos fotos semanais está vazio. Fui lá todos os últimos dias, nos mesmos horários em que íamos, desta vez pra chorar. Você hoje está apenas em minha memória.

Nos últimos meses, semanalmente fazíamos uma foto para marcar nosso envelhecimento e também porque eu sabia que tua idade avançava logaritmicamente.

Lembro de quando você apareceu em nossas vidas, eu não te dediquei muita atenção. Você morava na rua, estava doente, sem pelos e magra. Dalila quem insistiu em te salvar.

Passado algum tempo você estava melhor da sarna negra e foi morar conosco. Clara, inicialmente, como eu, não aprovou, mas depois aceitamos, embora ela tenha permanecido como a principal da casa até seu último dia.

Algum tempo depois você estava bonita com pelagem negra e farta como a de um urso. Passeava conosco e passou a gostar tanto de mim que eu não resisti, quando saíamos a brincar, eu jogava a bolinha, você corria para pegá-la e depois me devolvia. Ao voltar me olhava apaixonada com seus encantadores olhinhos de jabuticaba.

Você me ensinou sobre o processo de começar a amar alguém e que isto deve ser estimulado e construído, como fez comigo, alimentado cotidianamente, como um jardim, com disponibilidade e correspondência.
Tutor de pet sempre estará na condição de Pietá. Há cinco anos Clarinha nos deixou. Quando ela partiu todxs sofremos, você adoeceu e começou receber os cuidados do Dr Reinaldo. Passamos os últimos cinco anos cuidando de você com alimentação natural e homeopatia, o que prolongou o tempo e a qualidade da vida

Agora foi tua vez de nos deixar. Nosso momento é de luto, vontade de ir junto, mas a vida nunca foi lago, foi rio; nem uma fotografia estática, mas um filme. Isto passará, nossas lembranças serão as melhores!

domingo, 7 de abril de 2024

AMARO FREITAS 


Há duas semanas assisti o festejado pianista recifense @amarofreitaspiano no @sesc14bis




Eu o vi pela primeira vez numa edição do Jazz na Fábrica. Já era comentado em alguns grupos e fui assistí-lo, deve ter sido em 2017. Já era um grande musicista, excêntrico, mudérno (como diz Hermeto), mas tinha aquela identidade ainda em processo, uma fusão de muita musicalidade, mas bem jazzístico, era fácil perceber inspirações de Monk e também de John Cage.


Em 2020, raspando na chegada da pandemia ele tocou no Sesc Instrumental, deve ter sido uma das últimas apresentações antes do período de fechamento dos teatros. Aquela apresentação me ajudou passar as primeiras semanas da pandemia (quando vou numa apresentação boa fico com ela na cabeça por dias e aquele programa possuía o acréscimo de ficar gravado, voltei nele algumas vezes no youtube). Ali já encontrávamos um jazzista com características musicais nordestinas.


Tempos depois eu o vi no Café lá em Casa do @nelsonfariaoficial e já era um artista que encontrou o que procurava, sua identidade artística havia encontrado seus traços principais. Ele, visualmente, sua negritude, me faz lembrar um misto de Thelonius Monk com Charlie Mingus, embora nunca o tenha visto usando blazer, mas roupas coloridas e confortáveis que acentuam sua ancestralidade afrodescendente.


Um homem negro e nordestino que cresceu na periferia do Recife, no bairro Nova Descoberta, o que de algum modo sinaliza-nos o que ele significa à cultura brasileira, uma descoberta. O mais rico disso tudo é que ele não foi estudar música na Juilliard ou na Berklee, e nada contra quem foi. A música estava nele, bastava ser fertilizada. Ele é filho de padeiro e que também teve de vender pão para se manter, contou numa entrevista que não pôde pagar aulas de música e tomava aulas com um barbeiro que havia estudado um pouco mais. Hoje aquele mesmo homem, maduro e florescido, circula por importantes palcos do mundo levando nossa musicalidade nos ambientes reservados ao jazz.


E esse musicista encantador se atreveu a convidar o também pernambucano Zé Manoel para interpretarem um dos maiores discos da música brasileira: Clube da Esquina. O disco original já carrega uma riqueza rítmica, harmônica e melódica sofisticada que pouco se vê na música popular e com eles ganhou outros traços, com muitos rubatos que fizeram das músicas ainda mais intensas e envolventes, mormente com a participação afinada e emotiva da plateia. Foi um deleite, quem pôde assistir não tem do que reclamar, talvez um único motivo nos desagrade, acabou!

Quantos novos Amaros que não significam novas descobertas não temos perdidos neste país? São os gênios sem lâmpada, sem perspectiva, são os que fazem pão, entregadores, pintores de paredes, mecânicos... que têm um grande pianista esperando a oportunidade para nascer!

Viva Amaro Freitas e a Música Brasileira!







MASSACRE SIONISTA EM GAZA


Há duas semanas li o texto de Itamar Vieira Jr na Folha SP sobre o massacre promovido pelo exército sionista de Netanyahu em Gaza. Ele o concluiu com inequívoco acerto: "Qualquer manifestação sobre um evento complexo como a questão israelense-palestina aponta para o risco de cometermos injustiças. Mas silenciar pode soar como conivência (...)".



Fez com que eu me recordasse de Jean-Paul Sartre e a admoestadora apresentação do primeiro número da revista Les Temps Modernes, inaugurada logo ao final da segunda guerra: (...) "O escritor está numa situação de sua época; cada palavra tem repercussão. Cada silêncio também (...)."


Embora eu não seja escritor ou possua qualquer importância pública, lembrei-me que não deixei qualquer manifestação minimamente perene sobre o tema. Salvo stories, participação em manifestações de rua, assinado notas e atuado em Coletivos que registraram opinião sobre o tema, em termos de registro, nada existe.


Depois da foto de palestinos sendo alvejados na fila para receber alimentos, o adjetivo inaceitável perdeu significado. Não eram terroristas do Hamas ou militares que ali estavam, pode ser que algum estivesse, majoritariamente eram meros civis, incluindo crianças, mulheres e idosos.


Como bem registrou Zeina Latif, n'O Globo em 21 jan, pags 20-1 (...) o general Ghassan Alian, fez um pronunciamento em árabe dirigido à população de Gaza: “Animais têm de ser tratados como tais. Não haverá eletricidade nem água, haverá apenas destruição.” O ministro da Defesa, Yoav Gallant, afirmou que “não haverá eletricidade, comida, combustível — tudo está sendo bloqueado. Estamos lutando contra os animais humanos e vamos agir em conformidade.


A humanidade que reside em nós não pode permitir a adoção de classificar palestinos como eles, outros ou terroristas, quando também são Nós, são constitutivos de nossa generidade. É um pouco de cada um de nós que deixa de ser gente quando as imagens não nos afetam, passamos a ser menos humanos pela indiferença.


Chaplin n’O Grande Ditador termina com seu brilhantismo peculiar num discurso em defesa dos judeus como pertencentes e representantes de toda a humanidade, se fosse hoje seria contra Netanyahu e seus sionistas (não inclui o povo judeu) em defesa das pessoas massacradas em Gaza.


Isto não é aceitável faz bastante tempo!


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

 Religiosidade Musical

 

No tempo de Sebastian Bach a arte expressava e sintetizava a fé religiosa, são inúmeras catedrais, músicas, pinturas, esculturas e produções teatrais e literárias existentes. Podemos reconhecer que se não fosse a fé religiosa Bach não teria produzido sua rica, vasta, iluminada, perene e monumental obra musical.

Deve ser um pouco deste mesmo sentimento de proximidade com divindades que impulsiona algumas produções artísticas, em reconhecer a fé e materializa-la na música, aquela que séculos depois encontrou em Coltrane mais uma santidade e fez com que ele criasse sua própria religião musical.

E talvez seja esse sentimento quase religioso que me imponha a inafastável necessidade interna de absorver essas produções, de ser por elas arrebatado e contagiado ao ponto de ter de escrever, mesmo sem espaço e público leitor, atendendo apenas ao sentimento interno, não sobre Bach, Mozart, Coltrane, Hermeto, música universal, nem mesmo sobre Paulo Maia, mas sobre o sentimento autêntico que o humano carrega, sobre essa necessidade ética de fazer aquilo que se apresenta como a única opção correta.

Na 44ª edição do conhecido concurso de piano Guiomar Novaes, entre instrumentistas vestidos de gala, tocando harmonias e ritmos convencionais, já mais que centenários, apareceu Paulo Maia, camisa florida, em sua procissão pessoal no palco foi até o piano e mostrou sua identidade executando seu Suitão pro Campeão, não receou, marcou presença com a bandeira de sua escola aos olhos de todxs, como um destacamento militar excêntrico. Não deve ter sido diferente na história da música quando se abandonou o classicismo e compositores como Beethoven mergulharam no romantismo; quando Stravinski apresentou sua versão de música moderna; com Thelonious Monk ao inserir sua rubrica quase cubista na história do Jazz; e porquê não falar no albino Hermeto Pascoal expoente da música universal. A música sem isto seria estática, morta, mas ela é viva e depende de pessoas que queiram ir além da mera reprodução da cultura oficial.

Algum tempo atrás, no centro de São Paulo, Eu e Paulinho Maia, numa breve caminhada entre a Praça Roosevelt e o Sesc 24 de maio, onde ele se apresentou logo depois, contou-me de seu primeiro contato com a música do campeão, foi por uma fita K7 que ele ouviu ainda jovem e nela continha a gravação da apresentação de Hermeto em Montreaux. Foi tão impactante, aquele raio de luz que abre a escuridão e possibilita vermos aquilo que antes não víamos. Aquela fita mudou sua vida e até hoje produz efeitos, ou melhor, talvez produza mais que já produziu antes. Embora ele não tenha me dito, percebi o quanto aquilo era o contato com algo divino.

Paulinho e Hermeto em Duo
Escaleta e Berrante

Apenas pessoas que carregam fé em algo, são capazes de portar o novo, é o caso de Paulinho, que se presta, por conta própria, sozinho, há algum tempo, a gravar os dias do calendário do som, como um peregrino, a deixar registros da passagem da música universal, como se um saber absoluto se valesse do espírito de alguém como Hermeto para marcar sua existência sobre a terra... Paulinho segue devoto dessa força.

Paulinho, em plena pandemia, recebeu do próprio Hermeto partituras originais manuscritas de suas músicas inéditas. Não teve dúvidas, generoso como poucos, seguiu aquilo que internamente o tocou, juntou sua banda, como fieis cavaleiros, e foram ao estúdio tornar aquelas imagens contidas no pentagrama em sons para serem agora apreciados auditivamente.

Vejam como esta percepção faz sentido, em Verão Brasileiro, nos primeiros compassos, enquanto o piano de Paulo Maia delicadamente apresenta as primeiras notas, ao fundo, é o próprio Hermeto quem diz: Paulo Maia, acabei de escutar, quase voei da cadeira aqui, parabéns, Deus dizia pra mim quem era você e agora está confirmado o músico que você é, a musicalidade que você tem, a criação, tudo, a interpretação, gostei, tudo bem bonito... arrebente mesmo, tome conta do mundo ai!

Amizade Musical
Encontro de Duas gerações

Como disse o campeão: o álbum é uma lindeza só! Seja pelas composições do mestre ou pela interpretação e arranjos de Paulinho e a vivacidade de seus fieis cavaleiros musicistas.

Ouvindo o disco em primeira mão percebi que se Piazzolla gostou das estações do Padre Vivaldi e produziu suas estações porteñas, Hermeto dedicou a Paulinho Maia as quatro Estações Brasileiras. Outras seis músicas são igualmente ricas e universais, e que podem ser classificadas como olhares sobre paisagens brasileiras contadas sob a ótica da música universal, assim temos: seca no sertão, praia mansa, garoa paulistana, pelourinho, serra gaúcha e lagoa da pampulha. Ao final há uma preciosidade ainda mais disruptiva, que vai além do free jazz, mas que comportaria Ornette Coleman nela, intitulada Som da Aura, que bem sintetiza a mais elevada liberdade do espírito humano na música universal, uma quase iluminação religiosa.

Uma pena eu não possuir espaço em jornal ou em revista musical importante para apresentar ao público mais exigente e disponível a música de Hermeto interpretada pelo apóstolo Paulinho Maia e sua abençoada Banda.

Eu assisti muitas apresentações de Hermeto, algumas contaram com canjas de Paulinho. Sempre, ao final de seus longos solos, exigidos pelo mestre, que adora jogar na fogueira para ver como o músico se sai, o albino gritava aquilo que a esta altura todxs sabemos: Paulo Maia, grande músico!


Well Araújo


P.S. 1 - Abaixo temos Paulinho Maia numa de suas famosas canjas com a banda do campeão




P.S. 2 -  Paulinho é tão generoso que numa de suas gravações do calendário escolheu o dia de meu aniversário e gravou a 03 de novembro, longa vida a este musicista especial.