domingo, 11 de novembro de 2018

O menino que contempla


Não são todos que me conhecem que sabem que ei cursei direito, época em que aprendi algumas frases em latim. Dentre as poucas que eu gosto, e que uso com parcimônia, há uma especial: “habent sua fata libelli”. Realmente nossas produções (livros, escritos, pintura, escultura, fala, fotografia etc) seguem seu destino. Assim que o autor torna-a pública acaba perdendo seu controle acerca daquilo que gostaria que ela significasse, pois, as linguagens simbólica e alegórica fornecem àquele que com ela se defronta uma amplitude de opções exegéticas que sequer previu. Nada mais justo, pois, a liberdade de criação do autor deve possibilitar, assim que sua obra é tornada pública, a ampla liberdade interpretativa.
A famosa foto do fotógrafo Lucas Landau que captou o menino em pleno réveillon encantando olhando para o alto é um caso que seguiu seu próprio curso. Eu gostei da matéria publicada hoje no estadão de Simonetta Persichetti por algumas de suas ponderações. Eu já tinha lido alguns poucos textos que não fugiam muito ao de sempre, da nova esquerdinha namastê, que o menino é negro, que não está no mesmo espaço que os demais, que foi excluído por ser diferente etc. O que não deixa de possuir uma quantidade de acertos, pois, estamos no Brasil, paisinho com uma história difícil de digerir. Mas seria somente este foco realístico e sociológico?
Obviamente que a foto não é fruto de montagem ou cenário, é um recorte escolhido pelo autor, recorte espacial e temporal. Diria instante e espaço decisivos.
Mas ela me conduz a pensar partindo do lugar comum, temos um menino negro, sem camisa, que desceu o morro aquele dia etc. Mas eu prefiro ir mais adiante, pois, está ele, ao menos na foto, e é dela que aqui tratamos, diferente e destacado de todos os demais, sem qualquer companhia e que de algum modo, meio desajeitado, abraçando a si próprio, como que procurando mimetizar, com o que dispõe, o que os demais fazem. Ao fundo muitos habitantes da avenida, vestidos de branco, como compulsoriamente fomos adestrados!
Mas o que eu gostaria de focar nisto tudo, numa alegoria menos obvia, é que o menino pode ser a representação daquele que não é possuidor dos valores sociais que nos foram impostos e acriticamente incorporados em nosso cotidiano, não como se ele fosse o excluído, pois, ele é especial e aquele é somente mais um dia, ele pode ser a figuração de um olhar crítico que perdemos, ele não usa branco, seu calção é negro e sequer usa camisa, não abre qualquer garrafa de espumante e não se autofotografa incessantemente seja para postar nas redes sociais ou visando parar na coluna social de algum meio oficial.
E a fotografia é crítica, e o menino é a representação de um pensador crítico, porque se opõe a tudo aquilo que compõe o fundo da foto, pôs-se de costas àquelas bobagens sociais que preponderam em nosso tempo naturalizando as ideias de natal e de réveillon, ainda assim, a frenética necessidade de presentear e comer desenfreadamente me põe a pensar como isto tudo começou?! A ideia das ceias de natal e de ano novo é marcada por pratos que somente no inverno seriam aceitáveis, mas aqui as estações estão invertidas, o que configura um absurdo injustificável, faltava apenas nos vestirmos para enfrentar um inverno europeu ou da times square, mas talvez o exagero fosse tão grande que a absoluta falta de sentido fosse descoberta.
Saramago criou uma alegoria para falar de nossa alienação diante do mundo, é o que penso de “Ensaio sobre a cegueira”. Numa analogia penso que para a foto em questão todos estão cegos de crítica diante das tolas imposições sociais que nos foram fixadas, mas o menino da foto, de costas, não contaminado, não cego, crítico, volta seu olhar ao contrário de todas as demais pessoas, pois ele vê para além do predomínio das bobagens sociais efêmeras, ele contempla e criticamente.
Tenho para mim que a facilidade dos registros fotográficos somada às redes sociais, ou seja, que permitem a captação e exibição das muitas imagens, possibilitaram a emergência de algumas convenções sociais que eu não consigo mais entender. Minha dificuldade em entender alguém que numa viagem que dura uma semana e clica mil fotos passou quase que o período fotografando velozmente ou aqueles que vão numa apresentação musical e gravam-na sem prestar muito atenção no que se passa. Será que além dos cinco sentidos incorporamos um outro, o registro digital, como se todos os demais fossem insuficientes: sabor, aroma, textura, temperatura, cor, som não bastam, o registro digital é necessário!
Charlie Brooker com seu black mirror nos dá algumas pistas acerca daquilo que ele pensa dos valores sociais da atualidade, redes sociais, selfies e celulares. E a foto de Lucas Landau em seu fundo traz o conteúdo de black mirror e o menino é o crítico afastado de toda a cegueira social de nossos dias.
A foto abriu o ano aos olhares críticos e pouco adestrados!

jan 2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário