quinta-feira, 21 de junho de 2018

Vou recortar alguns textos meus e colá-los aqui.
Gosto de alguns deles e seria desperdício ficarem por lá aguardando sei lá o que e perdidos no meio de outras coisas completamente diferentes. Sei que não sou bom escritor, mas não sou cansativo de ler, acho que vale para alguma coisa.



Bourdain de coração ferido!



Eu nunca fui de dedicar meu tempo à TV, não ultrapasso a linha do descompromisso, nem jogo de futebol eu assisto, talvez me falte um pouco daquele traço da masculinidade brasileira que faz com que a maior parte devote suas tardes de domingo ao culto da bola, ou melhor, isto fazem os que jogam nos espaços mais empoeirados ou lamacentos, os demais contemplam os patrocinadores e de tudo o que está por trás da bola rolando em campo.

Assisti poucos programas ou séries na TV, à exceção do Dr House que me fez destinar oito anos acompanhando seus passos mancos e sarcásticos. Já os programas de culinária eu gosto, para aprender técnicas e culturas, reconheço que sempre fui meio nerd e CDF, saber a química, a biologia e a física da transformação do alimento na cozinha me despertam uma felicidade que não sei explicar. Estudo e pratico fermentação natural de cereais, legumes, verduras, frutas, o que me levou a fazer pães com fermento selvagem com alguma qualidade há alguns anos.
Não sou dado à glamourização e valores aristocráticos, aos cafonas talheres de prata ou à onda gourmet que assolou o mundo, que classificou porcaria como coisa boa e ladeou grandes invenções culinárias que alimentaram povos por séculos e cuidaram da manutenção de sua existência e reprodução física, a indústria cultural também se ingere! As coisas têm de ser autênticas (seja lá o que isto significar)! Há algo na cultura da comida e na bebida que me fascinam. Talvez seja a precisa afirmação antropológica de Claude Lévi-Strauss, a natureza é crua e a cultura cozida! A estética culinária que me faz sentido não é aquela que se subordina aos valores de fora e que me impõem apresentar ao público que faço parte de algo que internamente eu repilo. A grande descoberta culinária pode surgir dos locais mais improváveis, de nossas memórias mais idílicas, íntimas e longínquas; e também dos personagens, para lembrar de Remy, o ratinho cozinheiro e filósofo do filme Ratatouille, com seus grandes aforismos.
Michael Pollan é outro que seus textos nos fazem pensar na comida como algo indissociável de nossas vidas, desde a sobrevivência, ultrapassando o mundo da carência, e atingindo a liberdade alimentar que nos permite pensar para além das inumanas calorias, que nos possibilitam dedicar atenção à textura, sabores, aromas, ao visual, combinações harmônicas ou contrastantes.
Anthony Bourdain sempre foi aquele punk nova-iorquino que eu admirava. Um cara que venceu no mundo adulto, mas sempre preservou seu estilo outsider de quem nunca cresceu e virou mais um adulto comum e ordinário. Eu gosto muito de quem não se rendeu aos valores sociais que o mundo impõe, aqueles que as pessoas quando alcançam os vinte e poucos anos de vida os acolhem.
Assistindo aos programas por ele conduzidos em algumas ocasiões me veio à cabeça aquela lição de Leon Tolstói de que “se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia”. E a culinária tem muito dessa riqueza que nos possibilita romper com a síndrome de Vira-latas. Há algumas décadas era quase sinônimo de inferioridade alguns pratos que denotavam origem familiar pobre ou de regiões pobres, como a tapioca, farinha de mandioca, o acarajé, a feijoada, o pão de queijo etc., o processo de auto-reconhecimento e aceitação do brasileiro passou por eles. Uma das sacadas de Bourdain era esta, de procurar a autenticidade culinária sem hierarquiza-las num churrasco sulista, num sopão para moradores de rua na Itália com Bottura, procurar restaurantes de portinhas de imigrantes em Paris nos arrondissements menos badalados ou no Noma de Redzepi. Algo que Bourdain trazia em seus programas de comida, ao menos é o que eu deles extrai, foi a tal busca incessante da autenticidade culinária local.
E talvez tenha sido essa autenticidade que o levou a escrever o texto “A Ferida”, de suas memórias de Saigon, em sua obra “Em busca do Prato Perfeito”, é uma explosão de catarse, uma náusea sartreana daquelas que não permitem a pessoa ser como era antes daquela experiência, ele ganhou mais ainda minha admiração, que ser humano incrível que talvez me permita lembrar de Percy Shelley, num famoso trecho de sua From Adonaïs dedicada ao amigo John Keats que recentemente partira: “Paz, paz! Ele não está morto, não dorme. Ele despertou do sonho da vida.”




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