domingo, 22 de janeiro de 2023

Reminiscências guitarrísticas

 

Na história da música ocidental moderna, esta que predominou em nossos lares, o piano, e antes deste o cravo, foi não somente um mero instrumento musical, mas também ferramenta de educação da sensibilidade humana. Era em seu entorno que as gerações educaram sua sensibilidade estética auditiva em recitais ou em ambientes domésticos mais sofisticados.

No século XVIII os quartetos de cordas haydnianos embalavam as reuniões sociais e definiram o que seria música de câmara e a sensibilidade daquele período foi por eles conduzida. Os papéis do cello, da viola e dos dois violinos estavam lá desbravando uma nova linguagem de compositores, instrumentistas e ouvintes.

No início do século, especialmente em seu segundo quarto, o jazz, com fusões ocorridas, alargou esse campo da expressão sonora. E, mais recentemente, entre os anos 1960/70, a guitarra elétrica passou a ocupar alguma importância nesta função de exprimir sentimentos e também de educar as gerações a partir de seu conteúdo, numa função diferente, seus agudos trouxeram muito da expressividade violinística.

A guitarra teve geniais instrumentistas: Les Paul, Muddy Waters, BB King, Harrison, Richards, Jimi Hendrix, Clapton, Blackmore, Gilmour, SRV, mas teve também Jeff Beck, que possuía assinatura própria como poucos. A lista vai longe e as preferências, mesmo diante de obviedades unânimes, têm suas pitadas de subjetividade.

A primeira vez que ouvi Jeff Beck tocar, sem ainda saber quem era ele, na metade da década dos anos 1990, foi num CD de músicas selecionadas dos Yardbirds, contendo três guitarristas que posteriormente foram reconhecidos e alcançaram a fama: Clapton, Page e o lendário Jeff Beck. Já no final da adolescência eu conseguia perceber que não era a mesma pessoa que tocava, seja pelos timbres ou as opções de preencher a trilha musical com melodias, o que mais os distinguia entre si. Tempos depois encontrei os Yardbirds numa locadora da cidade, uma espécie de youtube da época que você levava a fita, inseria no videocassete e tinha de rebobinar antes de devolver. Levei a fita para casa, assisti os três guitarristas tocando, fui facilmente convencido de quem era o maior deles e um mundo se abriu a mim.

Clapton, mesmo genial, como garrincha, que sempre driblava para a direita, parece ter seu caminho melódico óbvio, e eu me mantenho devoto a São Slow hand; Page criou bons riffs, solos e conduções no Led Zepellin, Stairway to Heaven já foi objeto de desejo juvenil de qualquer guitarrista do planeta, mas nunca foi o guitarrista a me cativar por muito tempo. Já Jeff Beck era outra coisa, inovador, no tempo de hoje diríamos disruptivo, uma única nota saturada de sua guitarra era uma rubrica própria como uma pincelada de Van Gogh, seu timbre era diferente, suas melodias eram verdadeiramente inovadoras. Com o tempo, ainda usando Les Paul, quando ele já estava acima de toda uma geração de guitarristas, evoluiu musicalmente e desenvolveu um sofisticado uso de botão de volume combinado à ação de alavanca e harmônicos com sua Stratocaster que expressava com visceralidade algo que o violino cumpriu no passado com vibrato em notas agudas, dramáticas e cortantes, o genial Jeff Beck havia alcançado sua mais original e elevada versão musical.

Diz-se que Bach e Mozart foram capazes de equilibrar razão e emoção, pathos e logos, como o ideal de perfeição na Grécia clássica. Beck foi a explosão contida e calculada, não era uma bomba na calda de um foguete como Hendrix, foi um engenheiro apaixonado por expressões musicais explosivas, mas controladas e no compasso seguinte era doce e melodioso.

Há duas décadas, num daqueles Free Jazz, aquela edição ocorreu no Joquey Clube de São Paulo, eu o assisti ao vivo. Fiquei um pouco distante, mas pude sentir o timbre e sabemos que o som de apresentação musical ao vivo ouve-se com os ouvidos, olhos e com o corpo todo reverberando a partir da vibração que se recebe do PA, dos mais graves no peito aos mais agudos nas extremidades, óbvio que fiquei extático, ela tinha quase 60 anos, mas um vigor de palco invejável que eu com vinte e poucos anos não possuía. Nunca mais o assisti ao vivo, mas a lembrança daquela noite nunca se apagou, seu timbre era visceral, penetrante! Em passagens leves ele era tão delicado que parecia alguém a cantarolar melodias internas óbvias assoviando enquanto se caminha.

Sei do quanto que seria um privilégio de milionário assistir Jeff Beck num teatro pequeno e não num estádio. A impressão que tenho é que ele alcança seu maior rendimento nos clubes e sua sonoridade fica menos para o rock e mais para o fusion e o blues, que a mim é o mais fascinante e que seu timbre melhor se combina.

Jeff Beck tocou até o final de sua vida, aos 78 anos, ainda estava lá o velho Beck conduzindo sua banda com energia juvenil e precisão, ainda a frente de seu tempo e seduzindo gerações de jovens guitarristas, foi este cara que perdemos dias atrás, embora sua imortalidade tenha sido alcançada.


Well Araújo