Reminiscências guitarrísticas
No século XVIII os quartetos de cordas haydnianos embalavam
as reuniões sociais e definiram o que seria música de câmara e a sensibilidade
daquele período foi por eles conduzida. Os papéis do cello, da viola e dos dois
violinos estavam lá desbravando uma nova linguagem de compositores,
instrumentistas e ouvintes.
No início do século, especialmente em seu segundo quarto, o
jazz, com fusões ocorridas, alargou esse campo da expressão sonora. E, mais
recentemente, entre os anos 1960/70, a guitarra elétrica passou a ocupar alguma
importância nesta função de exprimir sentimentos e também de educar as gerações
a partir de seu conteúdo, numa função diferente, seus agudos trouxeram muito da
expressividade violinística.
A guitarra teve geniais instrumentistas: Les Paul, Muddy
Waters, BB King, Harrison, Richards, Jimi Hendrix, Clapton, Blackmore, Gilmour,
SRV, mas teve também Jeff Beck, que possuía assinatura própria como poucos. A
lista vai longe e as preferências, mesmo diante de obviedades unânimes, têm
suas pitadas de subjetividade.
Clapton, mesmo genial, como garrincha, que sempre driblava
para a direita, parece ter seu caminho melódico óbvio, e eu me mantenho devoto
a São Slow hand; Page criou bons riffs, solos e conduções no Led Zepellin,
Stairway to Heaven já foi objeto de desejo juvenil de qualquer guitarrista do
planeta, mas nunca foi o guitarrista a me cativar por muito tempo. Já Jeff Beck
era outra coisa, inovador, no tempo de hoje diríamos disruptivo, uma única nota
saturada de sua guitarra era uma rubrica própria como uma pincelada de Van
Gogh, seu timbre era diferente, suas melodias eram verdadeiramente inovadoras.
Com o tempo, ainda usando Les Paul, quando ele já estava acima de toda uma geração de guitarristas,
evoluiu musicalmente e desenvolveu um sofisticado uso de botão de volume combinado à ação de
alavanca e harmônicos com sua Stratocaster que expressava com visceralidade algo que o violino cumpriu no passado
com vibrato em notas agudas, dramáticas e cortantes, o genial Jeff Beck havia alcançado sua mais original e elevada versão musical.
Diz-se que Bach e Mozart foram capazes de equilibrar razão e emoção, pathos e logos, como o ideal de perfeição na Grécia clássica. Beck foi a explosão contida e calculada, não era uma bomba na calda de um foguete como Hendrix, foi um engenheiro apaixonado por expressões musicais explosivas, mas controladas e no compasso seguinte era doce e melodioso.
Há duas décadas, num daqueles Free Jazz, aquela edição ocorreu no Joquey Clube de São Paulo, eu o assisti ao vivo. Fiquei um pouco distante, mas pude sentir o timbre e sabemos que o som de apresentação musical ao vivo ouve-se com os ouvidos, olhos e com o corpo todo reverberando a partir da vibração que se recebe do PA, dos mais graves no peito aos mais agudos nas extremidades, óbvio que fiquei extático, ela tinha quase 60 anos, mas um vigor de palco invejável que eu com vinte e poucos anos não possuía. Nunca mais o assisti ao vivo, mas a lembrança daquela noite nunca se apagou, seu timbre era visceral, penetrante! Em passagens leves ele era tão delicado que parecia alguém a cantarolar melodias internas óbvias assoviando enquanto se caminha.
Sei do quanto que seria um privilégio de milionário assistir Jeff Beck num teatro pequeno e não num estádio. A impressão que tenho é que ele alcança seu maior rendimento nos clubes e sua sonoridade fica menos para o rock e mais para o fusion e o blues, que a mim é o mais fascinante e que seu timbre melhor se combina.
Jeff Beck tocou até o final de sua vida, aos 78 anos, ainda
estava lá o velho Beck conduzindo sua banda com energia juvenil e precisão,
ainda a frente de seu tempo e seduzindo gerações de jovens guitarristas, foi
este cara que perdemos dias atrás, embora sua imortalidade tenha sido
alcançada.
Well Araújo