domingo, 14 de julho de 2019


Clarinha deu sua última corrida

“Escrever é esquecer...”
(Fernando Pessoa)
Bernardo Soares, o mais próximo ao verdadeiro autor, Fernando Pessoa, registrou, colérico, aquele que eu mais gosto, no fragmento 116 de seu Livro do Desassossego que “escrever é esquecer...”

Clara, uma pointer inglesa
Passado um mês da agonizante madrugada e da triste manhã de domingo de nove de junho ainda está difícil falar seu nome ou assumir quando entro em alguns espaços que com ela dividi que nunca mais a encontrarei. Ainda há um tanto dela em cada canto e em nossa memória, sinto sua falta, que seja ao menos de seu olhar melancólico sobre o mundo que tanto me confortava. Mas minha piccolina que corria meio torta com as orelhas abanando contra o vento já não existe mais!

Clara tinha certeza que era gente e que cachorro eram os demais, incluindo muitas pessoas. Afinal, ela sempre teve vida melhor que do humano comum, suas únicas preocupações eram comer, pedir petiscos, ganhar cafuné, descer da cama e caminhar até seu banheiro no gramado do quintal, passear sem uso de coleira por ruas, parques e praças e sorrir com o rabo como se riscasse o ar escrevendo um poema.

Meu coelhão na páscoa de 2019
Em sua breve vida, se fosse gente não ultrapassaria aquilo que denominamos adolescência, ela foi amada, provou bons pratos, porque gostava de comer tudo com gulodice. Era como uma versão feminina e canina do Garfield, não me recordo dela ter comido lasanha, mas provou diversos tipos de queijos, charcutaria, algumas gotas de bons vinhos lambidos na pontinha de meu dedo indicador, até espumantes ela experimentou em noites de natal, réveillon e aniversários. Nos finais de semana, pela manhã, gostava de pedir um pouco daquilo que comíamos: frutas, iogurte, um cantinho do pão e um pedaço de queijo. Somente ia até seu prato comer ração quando percebia, um tanto desapontada, que tínhamos encerrado nosso café. Só não fumou charuto ou tomou café porque não oferecemos.

Desde que chegou em casa sempre foi mais gente que cachorro. Foi tão humana que me aproximou da ideia e dos sentimentos imanentes à paternidade. Quando pequena peguei no colo, ensinei passear sem coleira, parar no semáforo e cortar ruas e avenidas na faixa de pedestres quando a sinalização permitia e trocávamos olhares recíprocos de felicidade e paixão.

Dormimos por anos juntos sob o mesmo cobertor. Sentimos um a respiração e os batimentos cardíacos do outro, como se eu fosse um cachorro da matilha ou ela um humano da família.
Ela adorava tomar banho morno no chuveiro de casa com sabonete granado de lavanda para bebês. Odiava ser banhada em petshop, o que ocorreu pouquíssimas vezes ao longo de sua vida, quando o inverno era rígido e o secador de cabelos de Dalila não dava conta da demanda.

Nunca dormiu fora do quarto e adorava travesseiros altos, no inverno edredons e no verão a brisa do ventilador.

Dormia no travesseiro
O mais racional seria encontrar o equilíbrio entre o uso e a preservação, o que é impossível, nunca existe esse raso binarismo, sempre há um pouco da outra opção contida naquela escolhida. Os cães vivem pouco e os amamos, sabemos que a intensidade deve ser alta, pois, o tempo não será extenso o suficiente. O amor deve ser o mais intenso e concentrado possível, no formato canino, o que ela me ensinou. Temos de aproveitar cada minuto, sem o medo de perde-los e sem que a tristeza se imponha inviabilizando a convivência e alguns abusos selvagens de correr pela mata atrás de caça.

Ela era linda correndo atrás de pombos na praça, se era internamente um perdigueiro, acabou, por falta de opção e perdizes, e sem entender e sequer mesmo ler Sartre, tornando-se caçadora de pombas (se bem que no inverno me acompanhava quando eu lia algo na cama bem coberto e dizia algo a ela sobre o conteúdo e ela parecia entender).

Não me conforta a ideia dela ser mais uma estrelinha no céu, mas é a única que me resta e tenho de aceitar sua compulsoriedade já que não há mais vida em seu corpo. Restam boas lembranças, o rastro deixado nos caminhos por onde passamos e as fotos guardadas, desde quando ela estava em plena atividade em caçadas até próximo ao final da vida em meu colo para ir até o quintal ou deitada na cama depois de tomar soro e dormir eternamente em nossos braços.

Prefiro não aceitar que seja o sono eterno, mas que ela tenha dado sua última corrida atrás de um pombo e dada sua valentia e insistência tenha voado e não conseguiu mais encontrar o caminho de volta! Espero algum dia encontra-la novamente, apesar de saber que este sentimento é uma merda de uma fraqueza do momento, sei que nunca mais a encontrarei, acabou para ela e algum dia acabará para nós também...

Pode ser mesmo que escrever seja esquecer, mas meu desejo é de materializar o conteúdo da dor da perda, em forma de texto, para nunca mais me esquecer da espetacular convivência que tivemos e do quanto que a convivência com um cão pode nos ensinar sobre nós mesmos acerca de sermos melhores.

Clarinha faz uma falta sem fim!


Caçando pombos na prefeitura de Santo André
Caçando pombos na praça Kennedy